Quando a arte é guiada pela ancestralidade

Mulheres indígenas contam como a ascendência influencia na criação das peças que fazem com as mãos

06.07.2020  |  Por: Jo Melo

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Quando a arte é guiada pela ancestralidade

Herança, resgate ancestral, cultura e história. A arte indígena, que para muitos não passa de artesanato, carrega em suas cores, formas e visuais muitos significados e sobretudo muita ancestralidade. Segundo o IBGE, existem mais de 305 povos indígenas espalhados por todo o Brasil. Cada um deles traz consigo uma luta de muitos anos, pautada em temas como pertencimento e direitos. Ser indígena no Brasil é constantemente lutar contra costumes eurocentristas e resgatar, através de danças, músicas, adornos e rituais, o seu passado, a cultura através das mãos de seus descendentes.

Muitos ainda têm uma visão colonizadora do que é ser indígena, ainda nos veem como nos livros de História: cabelo liso, olhos puxados, vivem apenas em suas aldeias, não sabem usar tecnologia, não se comunicam. Mas enquanto continuam com essa visão, os povos indígenas estamos ocupando o lugar que também é nosso por direito, sendo na aldeia ou em contexto urbano. Temos parentes que se formam em universidades, são doutores, mestres, artistas, cineastas, fazem parte de movimentos sociais, moram em apartamentos, têm cabelo cacheado, são médicos, têm tatuagens e pertencem à comunidade LGBTQIA+.

Diante de todo esse pertencimento, luta e força, temos as mulheres indígenas – e essas cada vez mais estão ocupando espaços dentro e fora das aldeias. Elas são líderes, pajés, cacicas, e, com essa voz, inspiram outras mulheres no mesmo contexto social. Em muitas aldeias, por exemplo, elas criam movimentos sociais, espaços para que a voz de outras parentas seja ouvida, e são responsáveis por levar demandas da comunidade e propagar a cultura.

Nesse cenário de representatividade, temos muitas artistas mulheres que carregam em suas mãos a habilidade de colocar seu pertencimento e resgate ancestral em objetos, música, danças, grafismos e artes plásticas.

Moara Brasil, do povo Tupinambá, traz narrativas femininas indígenas, afirmação identitária e descolonização para fotografias, colagens, vídeos, instalações, murais, desenhos, instalações e performances. “Na série Mirasawa, apresento a temática feminina indígena a partir de colagens analógicas, digitais e pinturas. Desde 2016 venho produzindo a série Sagrado Feminino, que se transformou em Mirasawa, que significa povo em nheengatu. Me inspiram a sabedoria feminina, as mulheres fortes, as curandeiras, benzedeiras, parteiras, lideranças indígenas, Pachamama (a deidade máxima dos povos indígenas dos Andes centrais), a galáxia, o futurismo e a meditação”, conta. “Proponho uma ampliação da consciência pelas origens e memórias culturais, discutindo os papéis do passado e do presente em um ambiente urbano em crise de identidade.”

Moara Brasil: artes visuais a partir da investigação das suas origens

Todas as suas peças carregam história e há muito estudo por trás delas, através da investigação sobre a particularidade de cada povo. Moara cria suas colagens pesquisando sobre insetos, aves e botânica. “Investigo minha origem indígena, a ancestralidade, as marcas deixadas pela colonização e as relações feministas e de empoderamento das mulheres indígenas”, descreve.

Trabalho de Moara Brasil

A escuta ativa também inspira Moara: ela ouve histórias de parentes* de outras culturas – umas das suas principais inspirações. “Me inspira a simplicidade de viver da minha avó, do meu avô, na cultura e no conceito de comunidade/coletividade que eles procuraram passar para a gente, me inspira voltar para a comunidade e ouvir as histórias de meus avós contadas pelos nativos de Cucurunã, foi a partir dessa oralidade que criei o projeto @museudasilva, que estou divulgando no Instagram e em breve se materializará no Centro Cultural São Paulo.”

Lucineide Sol, conhecida como Sol Terena: pinturas corporais

“É com o preto do jenipapo que nos vestimos

É com o preto do jenipapo que nos pintamos

É com o preto do jenipapo que nos embelezamos

Pintar o corpo é pintar a alma”

Lucineide Sol, conhecida como Sol Terena, é do povo Terena e da Aldeia Tereré, no Mato Grosso do Sul. Em sua página no Instagram, através de performances, vídeos e venda de camisetas, ela carrega a missão de falar sobre grafismo indígena, sua história e importância para o conhecimento da cultura do seu povo.

Cada pintura tem um significado: há pinturas de festa, luta, dança, saúde, força, proteção, festas, nascimento – além disso, algumas são exclusivas para mulheres. “A pintura também é nosso vestimento. Os traços são escritos em nosso corpo, que nos reveste com a força dos nossos ancestrais”, conta.

A maior inspiração de Sol Terena em seus grafismos é a essência de pertencer a um povo de luta. Ela conta que as pinturas perpetuam a cultura e a honra dos seus ancestrais. “Quando faço a pintura corporal em mim, me sinto renovada, motivada, protegida, forte, me sinto bem, e para fazer as pinturas em outra pessoa a minha mente e energia precisam estar conectadas com as forças naturais em uma só sintonia.”

Grafismos feitos com tintas naturais

A tinta usada nos grafismos vem também da natureza. A tinta preta, por exemplo, é extraída do jenipapo. Ela conta que muitos indígenas ralam a fruta, extraem o líquido e misturam como o carvão; já outros cortam a frutas em pedacinhos e misturam com água e carvão deixando ao fogo. Por outro lado, há quem use o líquido do jenipapo direto no corpo. “A durabilidade da pintura também depende muito da energia da pessoa naquele momento, pois quando estamos prontos para receber uma pintura, a energia, a vibração e o astral têm que estar em harmonia e conectados”, diz. Outros materiais são utilizados para preparar a tinta. De acordo com Sol, a cor vermelha é feita com urucum, e a cinza, amarela e branca com argila. “Sempre em meu trabalho de pintura corporal indígena utilizo a tinta preta, extraída da fruta do jenipapo, que é a mais usada pelos parentes*”.

Além de pintura corporal, Sol também faz a arte de camisetas com as frases “Lute como uma mulher indígena” e “Terras indígenas, demarcação já”, uma campanha de demarcação das terras tradicionais, até então tão reivindicadas. Com as vendas ela ajuda outras mulheres indígenas. A pintura corporal não embeleza somente o corpo: renova a alma e revigora toda energia.

O orgulho dessas mulheres em usar suas mãos para mostrar e perpetuar a cultura é fundamental para que todos nós saibamos o quão é sagrado e deve ser respeitado.

 

*Mesmo não tendo a mesma ligação sanguínea ou ser do mesmo povo, a expressão “parente” entre os povos indígenas como significado de comunidade e família

 

Jo Melo é mãe e problematizadora nata, especialista em marketing digital, editora e criadora da Revista Mães que Escrevem

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