‘Nin’ | ‘Quando a mulher muda, o homem muda’
Conheça Marina Motta, criadora da página Aqui Só Fala Homem Branco e ativista incansável pela igualdade de gênero
23.03.2018 | Por: Alice Galeffi
A página Aqui Só Fala Homem Branco é uma plataforma no Facebook que denuncia eventos em que 100% dos convidados com o microfone na mão são brancos e do gênero masculino. Formada em Ciências Sociais na UFRJ, Marina já trabalhou na ONU, na Anistia Internacional e em diversas ONGs brasileiras. Atualmente trabalha na Fundação Ford, um fundo americano que financia projetos sociais pelo mundo. Aqui, ela conta como surgiu a ideia da página e quais suas experiências mais marcantes lutando por direito, justiça e conscientização num contexto cheio de homens brancos que insistem no conceito de meritocracia. Um mundo que a ensinou, por exemplo, como se “desassociar” de um estupro, pensando que aquela violência é “apenas”com seu corpo, não com você.
Como surgiu a ideia da página Aqui Só Fala Homem Branco?
Várias amigas que são juízas, defensoras, professoras e pesquisadoras volta e meia me mandavam fotos dizendo “caralho, tô em mais um evento só com homem branco” ou “me chamaram pra mais uma mesa-redonda em que pra variar eu sou a única mulher e ninguém considera o que eu falo”, ou ainda, “tô em mais uma mesa na sede da ONU, uma organização que teoricamente promove a igualdade de gênero, e tem um cara me explicando o meu próprio artigo e me corrigindo, como se eu não soubesse nada do que estou falando” – esse último é o famoso mansplaining. Em vez de dialogar, de acrescentar e interagir com a gente, é sempre esse olhar infantilizante que é direcionado às mulheres, mesmo aquelas em posições de poder.
Foi praticamente um chamado.
Não dava mais pra negar o machismo e a dominância que existem nesses espaços. Então criei a página, só pra ir jogando o que as pessoas me mandavam. Mas uma página sempre abre uma caixinha de pandora onde qualquer pessoa pode te escrever. A gente começou a receber mensagens do Brasil inteiro, o que é muito legal, mas também chocante. E foi irônico, pois eu acabei vendo que o que estava acontecendo no meu círculo acontecia no Brasil inteiro, o tempo todo, todo dia.
Tem algum dos casos que te marcou mais?
Sim, por exemplo, um evento acadêmico sobre como a Lei Maria da Penha impactou a vida das mulheres tinha uma mesa com seis homens. Professores de Direito. Brancos. Mesmo existindo professoras maravilhosas na mesma faculdade, e que seriam muito adequadas para o debate. A desculpa é sempre a mesma: “Ah, mas a gente queria os melhores, e eles são homens brancos.” Entende que uma pessoa só vai virar melhor e ser considerada uma das melhores no dia em que você colocá-la na mesa pra debater e questionar os melhores? Esses homens sempre falam que estão sendo atacados, que é mimimi, mas a melhor de todas é quando falam de meritocracia: “Vocês não sabem quanto a gente trabalhou pra chegar até aqui.” Claro, todo o mérito alcançado não teve nada a ver com o fato de o cara ser um homem branco rico de uma família de diplomatas…
Você pode citar casos em outros setores?
O último caso mais impressionante que rolou na nossa página foi sobre a cena de música instrumental no Rio, sobre o último show do Hermeto Paschoal. Foi um case de sucesso de como as redes sociais podem ser uma arena de debate público incrível. Uma amiga me mandou uma foto dizendo que estava num show em que estava todo mundo se sentindo desconfortável, pois apesar de o show ser incrível, só tinha homem branco no palco – numa banda de 27 músicos. Ninguém consegue mais aplaudir um palco com 27 homens brancos porque mesmo que eles estejam fazendo a coisa mais incrível do mundo tem alguma coisa errada aí. Uma vez que você vê a invisibilidade de metade da população, você não “desvê” mais. Fiz o post na hora, rendeu muitos compartilhamentos, zilhões de comentários e um debate super rico sobre a falta de representatividade de gênero e raça na música brasileira.
Você acha que o feminismo está fazendo efeito? O pensamento das pessoas está mudando?
Os movimentos disruptivos nas normas de gênero que estamos vendo estão mudando todo mundo. Geralmente quando a mulher muda, o homem muda. A relação muda e a interação muda. O movimento feminista serve tanto para empoderar as mulheres como para transformar os homens, mas a gente parte das mulheres. É tão poderoso a gente se relocalizar que os homens já estão necessariamente se relocalizando. Porém, não somos nós que vamos dar o script de como ser um homem legal. A gente não quer mais esse ônus. Grande parte deles têm todas as ferramentas para pensarem por si só. Tem que sentar, pesquisar e escutar.
Você sente medo por ser mulher?
Muito. Já sofri muito assédio. Quando eu morava no Timor Leste eu apanhei de dois homens na rua porque eu estava de short. Moro em Santa Teresa, no Rio, e tenho medo de andar sozinha à noite no meu bairro. A gente tem medo de roubarem nosso celular, de alguém bater na gente, mas, acima de tudo, a gente sente medo da violência sexual. Os homens não correm tanto risco de serem estuprados, mas a gente, sim.
Trabalhando pelo mundo você deve ter passado por muitas situações de medo, não?
Sim, mas uma das mais marcantes foi numa aula, acredita? Quando eu entrei na ONU fiz um treinamento sobre Prevenção de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Ele cobria desde o que fazer em caso de colocarem uma bomba no seu escritório até reações em caso de estupro, onde te ensinam algumas técnicas para tentar escapar, como fazer xixi na hora do estupro a fim de fazer o estuprador sentir nojo de você, ou falar que está grávida para tentar acionar compaixão nele. Mas o mais louco pra mim foi o que chamam de desassociação: depois de ter tentado argumentar para sair da situação, e visto que não vai chegar a lugar algum, desassocie seu corpo da sua mente; imagine que aquilo está acontecendo com o seu corpo e não com você, e tente levar sua mente para a lembrança de um espaço seguro como a casa da sua mãe, uma praia familiar… Quando acabou o treinamento eu chorei muito, não conseguia parar. Eu chorava tanto por medo de passar por uma situação daquelas como por ter que assistir a essa aula. Pra viver nesse mundo eu tenho que aprender as técnicas mais eficazes para me proteger de um assédio e me dissociar de um estupro? Só isso já é uma violência muito grande.
Que tipo de ativismo você exerce?
Me identifico com o Feminismo Interseccional. Estudo como as diferentes questões identitárias se entrelaçam e se reforçam. Ser mulher, negra e de classe baixa é um somatório de opressões muito louco. Ser mulher, branca, ter 60 anos e trabalhar num ministério, por exemplo, é ter muito mais voz do que uma ativista de 18 anos lutando pela legalização do aborto. Esses mosaicos identitários potencializam ou fodem a gente.
Como é o seu trabalho?
Trabalho diariamente para que existam espaços que ensinem a pensar sobre desigualdade de gênero, raça e classe. No Brasil falamos pouco sobre como pautar a agenda pública, ao contrário dos EUA que adoram um public debate. Temos uma mídia muito poderosa e uma sociedade civil pouco desenvolvida e com poucas ferramentas. Quando acontece algo em uma comunidade (por exemplo: a Associação de Mães de Manguinhos quer fazer uma passeata porque um jovem foi morto), as pessoas muitas vezes não sabem como acionar a mídia e não sabem para quem ligar. Elas não têm assessoria de imprensa, o que é básico. Na minha militância eu tento fazer justamente essa ponte entre o ativismo de base e o debate público.
Quais as maiores dificuldades?
O problema é que mesmo alcançando as mídias e o debate público, o machismo e o racismo estão entranhados na sociedade, são estruturais. O ativismo não basta para transformar as leis e as instituições: a gente precisa de insiders. Precisamos da defensora pública fodona para fazer um trabalho de formiguinha ali dentro do sistema de Justiça; alguém que escute as ondas do ativismo e que mude na prática as instituições. Precisamos que o presidente, a deputada e a desembargadora que estão no último nível do poder (os tomadores de decisão) mudem as leis e as instituições. Para isso precisamos que essas mulheres intermediárias cheguem em posições de alto poder, e isso só é possível se a gente apoiar e votar nessas mulheres.
Você disse que o feminismo chegou um pouco depois na sua vida, em que momento você teve esse clique?
Sou brasileira, mas já morei em muitos lugares trabalhando com direitos humanos, e convivi com diferentes tipos de machismo, desde ser tachada de stripper nos EUA, onde tinha ido estudar, a levar bronca na França (onde presumiam que eu era marroquina), por não usar o véu das mulheres muçulmanas. Me identifico como feminista desde nova, mas a primeira vez que realmente me envolvi com esse campo de estudo foi durante meu mestrado em Relações Internacionais na Sciences Po, em Paris, onde tive uma aula sobre gênero e segurança. Nos mostraram como nas decisões globais de acordos de paz as mulheres não são consideradas. Existem estudos que mostram que os acordos de paz mais bem-sucedidos e inclusivos são aqueles de que as mulheres participam, pois elas pensam onde tem que ter escola, hospital e maternidade, enquanto os homens geralmente se focam em negociar o petróleo, divisão de territórios, fontes de água etc.
Você já trabalhou bem próxima ao Congresso, como foi essa experiência?
Quando voltei ao Brasil fui trabalhar na Anistia Internacional fazendo incidência política no Congresso, aquele ambiente dominado por homens brancos de terno preto mal cortado. Assim que cheguei lá, “a novinha do rolê”, me senti um pedaço de carne. Inúmeras vezes teve deputado passando a mão em mim… eu tinha que levantar e ir beber uma água pra me acalmar. Apesar de nunca deixar esse tipo de situação passar em branco, meu trabalho dependia daquelas relações. Naquela época eu fazia advocacy para que os deputados aprovassem leis para garantir direitos humanos. Eu ia pra Brasília frequentemente e era muito frustrante ficar duas horas numa reunião explicando uma legislação sobre controle de armas e no final a única pergunta que me faziam era se eu ia voltar pro Rio no mesmo dia, se queria ficar pra tomar um chope.
2 Comentários
2 respostas para “‘Nin’ | ‘Quando a mulher muda, o homem muda’”
Adorei o texto. Parabéns!
2 pontos:
1 a atitude de procurar o que há em comum entre identidades específicas é um diferencial de união!
2 não pontuar que a questão do capitalismo, seu modo de produção e trabalho, seu modo de fazer política, sua estrutura como a maior dificuldade para empoderamento das mulheres, dias negras e outros grupos discriminados é imperdoável.
A Ford financia, enquanto não apontarem o capital como mal primordial, enquanto só atacarem as consequências nefastas do sistema mas nunca suas causas, teremos financiamento para todos, estimulando a segregação e a dissidência entre esquerdas.
“Uma vez que você vê a invisibilidade de metade da população, você não “desvê” mais.”
Isso é muito louco, pois ao mesmo tempo que é libertador entender o que acontece é muito frustrante ver que acontece o tempo inteiro.
Essa semana fui em uma reunião na associação de engenheiros da minha cidade, o palestrante contou uma experiência de estar com a glicose alta e ter que fazer dieta. Contou que foi em varias nutricionistAs e que elas só indicavam coisas da moda e sem estudo científico. Só funcionou quando ele encontrou um CARA bom, que cobrava como um medicO.
Só eu percebi os artigos femininos e masculinos nas palavras porque eu era a única mulher no local.