Quando dividir apartamento vira dividir confinamento
Os dramas e dilemas éticos cotidianos de quem está passando a quarentena junto com 'flatmates'
15.07.2020 | Por: Maria Clara Drummond
O inferno são os outros, ou melhor, é a convivência, 24 horas por dia, com as mesmas poucas pessoas, para todo o sempre. Esta é sinopse da peça Entre Quatro Paredes, de Jean Paul Sartre. Mas também pode resumir a rotina que nos foi imposta durante o confinamento por conta da pandemia do novo coronavírus. Não à toa, o número de divórcios e separações conjugais aumentou vertiginosamente.
No entanto, se está difícil o cotidiano com o ser amado, com quem escolhemos dividir a vida, na alegria e na tristeza, na saúde ou na doença, imagina como ficam os demais arranjos domiciliares, entre duas ou mais pessoas unidas no mesmo apartamento não por amor, e sim por praticidade, conveniência, orçamento.
Nas décadas passadas, dividir apartamento com um flatmate era associado à juventude, uma situação temporária que se encerraria aos 30 e poucos anos, um rito de passagem antes do casamento. A expectativa era que em dado momento o flatmate fosse substituído por um cônjuge, e enfim se formasse uma família. Hoje, não só o casamento ocorre muito mais tarde que outrora, como também a falta de emprego, a crise econômica e a bolha do mercado imobiliário, com os preços cada vez mais altos, eliminou o caráter provisório desse arranjo.
A consequência dessa maior permanência é o alargamento do espectro etário. Nos Estados Unidos, 30% dos adultos entre 23 e 65 anos moram com flatmates – 21% a mais que em 2005. Em Portugal, onde sou radicada, parte considerável dos anúncios de aluguel de quartos confirma essa tendência, com moradias divididas entre jovens, adultos e idosos. Às vezes, o flatmate já é um amigo, ou alguém presente no círculo de amizades, mas há quem prefira um desconhecido, sem vínculos afetivos. Para muita gente, é mais jogo alugar um quarto, compartilhando as áreas comuns, e viver no centro da cidade, do que morar longe e perder duas horas do dia no trânsito.
As regras e limites éticos da convivência variam radicalmente de casa para casa. Com a pandemia, e seu consequente confinamento e home office, novas questões foram colocadas. Quantas vezes por semana é aceitável sair para compras? É tranquilo dar uma escapadinha, como uma volta pela cidade ou fazer exercícios ao ar livre? Qual a frequência ideal para desinfetar maçanetas e superfícies? São perguntas difíceis de serem respondidas, dada a natureza misteriosa do vírus, mesmo para quem vive sozinho, responsável apenas por si mesmo.
De repente, havia quatro pessoas trancafiadas em casa, com os humores abalados pela conjuntura político-econômica, e constante tensão sanitária
As dúvidas ganham uma dimensão mais séria quando há outras pessoas envolvidas, passíveis de sofrerem consequências pela leviandade alheia. O namorado pode continuar visitando dia sim, dia não? Ou ainda, caso se mude durante a quarentena, deverá dividir as contas e o aluguel? E se for um relacionamento informal, como ficantes ou fuck buddies, qual o procedimento? É permitido ocupar a sala de estar para fazer exercícios aeróbicos? A música pode estar em volume alto ou é melhor sempre usar fones? Como a mesa de jantar vai ser reorganizada a fim de transformar-se em espaço de coworking? É falta de educação passar o dia todo de pijama? Ou é preciso colocar uma roupa apresentável para maior interação com os outros integrantes da casa?
Há um ano e meio, eu me mudei de país, e depois de uma década morando sozinha, procurei um quarto para alugar. Eu só fazia questão de três coisas: região central, armário razoável e espaço suficiente para meus livros. Em casa, sou bastante reclusa, fico trancada no quarto, lendo, escrevendo, assistindo a filmes. Era comum passar dias sem encontrar minhas flatmates. Em março, no início do lockdown lisboeta, essa configuração mudou.
De repente, havia quatro pessoas trancafiadas em casa, com os humores abalados pela conjuntura político-econômica, e constante tensão sanitária. Afinal, era óbvio que uma moradora doente iria contaminar todos que ali residissem. Tudo era motivo de suspeita: a ida ao supermercado, o delivery de restaurante, o pacote de biscoito que não foi lavado, um espirro, uma tosse.
A convivência até estão esparsa deu lugar a um esquema de BBB. Neste momento, as diferenças geracionais passaram a influir naquela relação. Elas, recém-formadas na faculdade, tinham uma expectativa de experiência habitacional à la Friends. Eu queria um quarto; elas, um lifestyle: a alimentação vegana, as roupas de brechó, a decoração do-it-youself, a vitrola que tocava em ritmo perpétuo Transa, do Caetano. Eu só pensava sobre o hábito moderno de relacionar consumo (mesmo consciente) com identidade. “What kind of dining room set defines me as a person?” (Que tipo de conjunto de jantar me define como pessoa?), se pergunta o narrador de Clube da Luta (1999).
É possível desenhar algumas opções para quem divide apartamento e foi compelido pela primeira vez a uma coexistência 24/7:
1) Abraçar a situação e migrar para uma vida de sitcom: cozinhar em conjunto, fazer o próprio pão, criar playlists, improvisar uma amizade;
2) Voltar a morar com os pais, no quarto de adolescência, cama de solteiro, jantar em família;
3) Aproveitar a quantidade enorme de AirBnBs, órfãos do turismo, com enorme oferta e nenhuma demanda, e, portanto, com preços diminutos, às vezes até mais baratos que um quarto, e partir para uma empreitada solo.
Com alguma criatividade, e sempre responsável com sua própria saúde e a dos outros, talvez consigamos sair dessa mais ou menos incólumes.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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