Quando o machismo foi perdoado
Podcast revisita o Caso Doca Street, em que o playboy paulistano se tornou um herói ao matar com quatro tiros a namorada, Ângela Diniz; história vai virar série audiovisual
14.09.2020 | Por: Flora Thomson-DeVeaux
Deu no New York Times, no dia 28 de outubro de 1979: “Machismo absolved.”
A matéria é um artefato interessante por aquilo que ela acerta e naquilo que ela erra. O repórter, Warren Hoge, começa traçando um breve perfil das duas figuras envolvidas: “Doca Street, um playboy paulistano de 45 anos, e sua amante, Ângela Diniz, morta por ele aos 32 anos. Ângela tinha o hábito de perseguir os muitos homens de sua vida com tamanho afinco que ficou conhecida nas colunas de fofoca como ‘a Pantera’.”
Se ao ler essa descrição você quase parabenizou o sujeito por ter conseguido se salvar de um animal tão perigoso, já pode considerar que está respirando um pouco do ar de 1979. Passei um ano e meio mergulhada na pesquisa dessa época para destrinchar os detalhes do caso. Antes disso, lá atrás, a Branca Vianna, apresentadora do podcast Maria Vai com as Outras, ficou espantada ao constatar que nem eu nem minha mulher, Paula Scarpin, conhecíamos a história.
Assim nasceu o projeto do Praia dos Ossos: um resgate de um caso que teve um impacto meteórico na época e cujos contornos começaram a ficar mais nebulosos com o passar dos anos. E começou também a tentativa de recuperar a humanidade da mulher insistentemente caracterizada como um animal feroz. Tive a sorte de ser a pesquisadora encarregada dessa missão.
Qualquer viagem ao passado traz sobressaltos – esta que vos fala diz isso com propriedade, tendo passado alguns anos mergulhando no Rio de Janeiro oitocentista para traduzir Memórias Póstumas de Brás Cubas – mas comecei logo no início a sentir a estranheza daquele momento histórico, uma estranheza que de certa forma ecoa até hoje. Foi um momento em que um jornal sério podia ao mesmo tempo condenar a “absolvição do machismo” numa matéria sobre um assassinato e também descrever a vítima nesses termos. E se foi assim no New York Times, dá para imaginar o que saiu em publicações com um padrão, digamos, menos rigoroso.
Seguindo com o texto de Hoge: “Nenhum dos fatos do caso estava em debate. Sr. Street, tendo abandonado mulher e filhos para morar com a Srta. Diniz no luxuoso balneário de Búzios, a 200 quilômetros do Rio, se enfureceu quando ela flertou com um francês e uma alemã na praia. Mais tarde, no mesmo dia 30 de dezembro de 1976, ela o mandou embora da casa. Ele voltou munido de um revólver e disparou quatro vezes no rosto dela, à queima-roupa.”
Discordo do repórter em alguns pontos – havia, sim, vários fatos do caso em debate, o francês era imaginário, e Búzios ainda não havia atingido sua encarnação máxima como estacionamento de cruzeiros – mas o essencial está ali: “Sr. Street” atirou quatro vezes contra a (agora ex-)namorada indefesa. Então como é que o machismo acabou absolvido?
A resposta passa pelo fato de que o machismo não foi só o da reação específica do “Sr. Street” ao fim do namoro, materializada naqueles quatro tiros. Uma coisa que o processo de pesquisa me mostrou é que, como gosto de dizer, the hole is farther down. Neste caso, bem mais embaixo.
Evandro Lins e Silva, o advogado de defesa, construiu seus argumentos em torno do poder do ciúme
Voltando para o texto do New York Times, o correspondente tenta contextualizar o incidente de Búzios na história brasileira: “Crimes passionais são frequentes no Brasil. Já em 1712, um explorador francês escreveu a respeito dos ‘portugueses ciumentos’ e notou o número de assassinatos românticos que aconteciam a cada ano na colônia. […] Num incidente típico do Brasil oitocentista, um produtor teatral matou a tiros a mulher dele, uma cantora lírica famosa, porque ela fazia questão de passear pelo Jardim Botânico contra a vontade dele. A acusação acabou sendo retirada, e o assassino foi carregado pelas ruas pelos admiradores.”
Verdade seja dita que Doca foi condenado – mas a uma pena leve que foi imediatamente suspensa. E quando ele saiu andando do tribunal de Cabo Frio, em 1979, foi recebido por uma multidão calorosa. Eis a “absolvição”.
O texto de Hoge termina assim:
Evandro Lins e Silva, o advogado de defesa […], construiu seus argumentos em torno do poder do ciúme. “Certos sentimentos são eternos, e um deles é o ciúme”, ele disse.
Dessa vez não preciso recorrer ao acervo digital do New York Times. Puxo o Google News e digito “matou por ciúmes”.
“Adolescente é morta com corte no pescoço e namorado confessa crime em Vitória”, 10 de setembro de 2020.
“Homem que matou namorada é preso fugindo para o Pantanal”, 8 de setembro de 2020.
“Marido diz que matou mulher com 30 facadas após crise de ciúmes no AM”, 3 de setembro de 2020.
Pelo jeito, ainda não estamos muito longe de 30 de dezembro de 1976, o dia em que a “crise de ciúmes” do “Sr. Street” tirou a vida da “Srta. Diniz”. Resta saber se continuaremos revendo a história de outubro de 1979, em que o machismo foi perdoado.
Flora Thomson-DeVeaux, escritora e tradutora, mais recentemente de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês (The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, Penguin, 2020), trabalha na Rádio Novelo e mora no Rio de Janeiro.
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