Quando o ninho vazio dá lugar a uma nova juventude

A escritora Clara Averbuck escreve sobre a recém-conquistada 'liberdade da meia-idade': 'Pela primeira vez uma casa só minha, minha bagunça, minhas responsabilidades, minha louça, meus animais. Tudo eu nessa casa! Que delícia'

26.10.2021  |  Por: Clara Averbuck

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Quando o ninho vazio dá lugar a uma nova juventude

Eu moro sozinha. Pela primeira vez tenho uma casa todinha minha. Realizei o sonho do banheiro próprio! Do apartamento próprio (alugado, claro: isso ainda é outro sonho) e do escritório próprio, de onde produzo este texto. Tenho 42 anos. Minha filha tem 18 e foi morar sozinha logo na primeira semana. Tudo planejado por ela, que procurou apartamento e escutou muito “se vira” da minha parte.

Saí da casa dos meus pais aos 19 para morar com um namorado, saí de Porto Alegre para São Paulo e vim morar com amigos, depois com outro amigo, depois fiquei grávida e nunca mais fiquei sozinha. Casei de novo, separei, casei, mas o quartinho da minha filha sempre esteve lá, mesmo quando ela não estava.

Quando ela nasceu tive a consciência de que jamais estaria sozinha de novo. E sei que não estou, mas sinto como se estivesse vivendo uma nova juventude (ou crise da meia idade? Ou liberdade da meia idade?), ainda que estranha pois no meio de uma pandemia. Uma casa só minha, minha bagunça, minhas responsabilidades, minha louça, meus animais. Tudo eu nessa casa. Tudo eu nessa casa! Que delícia.

Ouvi de muitas pessoas que sofreria da síndrome do ninho vazio, que estava comemorando meu espaço mas que logo sentiria falta dela, choraria e não sei o que mais. Eu estou é feliz da vida!

E ela também, na casa dela, no emprego dela, com os gatos dela, os perrengues dela. A primeira conta de luz só dela. Todas as responsabilidades, faxina, roupa, tudo. Não posso imaginar a criação melhor do que a independência para os filhos.

Minha análise tem agora apenas meus assuntos. Minhas leituras estão mais longas, mais plenas. Meu sono está melhor e minha casa não tem mais cheiro de maconha e cigarro

Diante da possibilidade de ver os filhos voando, não optaria por outra coisa. Gosto da ideia de saírem de casa jovens e buscarem independência. Sem esquecer que vivemos em um país que poucos têm condições de ser independentes, claro, e que a maior parte das famílias não pode deixar de estar juntas para compor renda e colocar comida mesa, pagar o gás, pagar as contas. Falamos aqui de uma perspectiva de classe média, de uma família paterna que tem condições de ajudá-la entre, já que do meu lado somos todos artistas estamos sofrendo com o desmonte da cultura durante essa época de trevas. Sabe o que é mais curioso? Ela também é. É uma cantora incrível e com 18 anos compõem coisas que me tocam profundamente. Talvez como eu fizesse com meus pais quando tinha idade dela, o que fez que eles criassem a Secretaria de Cultura da Casa. Para qualquer regalo, tinha que pagar com texto.

Ela trabalha em um shopping. É vendedora, e eu tenho muito orgulho: sei que isso vai ensinar a ela muitas coisas que uma vida de com certos privilégios pode a ter poupado de ver.

Estou feliz de ver ela focada no trabalho, na arte, em pagar as contas. Estou feliz demais. Adoro visitá-la, e adoro quando ela me visita. Adoro mais ainda que cada uma tem o seu espaço agora, pois o que ensinei é que individualidade e subjetividade, para uma mulher, como nos ensinou Virginia Woolf, vêm com um teto todo seu. Eu agora tenho o meu, ela, o dela, e nossa arte floresce como as plantinhas que eu cuido desde a semente.

Quanto a mim, me vejo com total foco. Em mim. No meu trabalho. Na minha saúde mental, minhas amigas, minha militância. Minha análise tem agora apenas meus assuntos. Minhas leituras estão mais longas, mais plenas. Meu sono está melhor e minha casa não tem mais cheiro de maconha e cigarro. Só vem aqui quem eu chamo. Entrei no crossfit! Sigo no pole dance, como há qutato anos, minha grande paixão. Estou escrevendo três livros ao mesmo tempo, gravando podcasts, tendo ideias ininterruptamente. Tenho vivido minha vida, enfim.

Curioso pensar que a maioria dos homens não passa por isso, pelo “depois que os filhos saíram de casa”. Eles têm lá as coisas de meia-idade deles, mas essa vivência pós-maternidade é algo nosso, essa coisa do espaço, dos planos, projetos, sonhos. Afinal, estamos acostumadas a protelar tudo em nome da família. Que sorte a minha ter uma mãe que me ensinou a me priorizar. E eu ensinei a minha filha a se colocar em primeiro lugar, antes de tudo – principalmente, antes de relacionamentos. O resto é com a vida. Que tem que e deve ser nossa antes de tudo.

 

Clara Averbuck é escritora e tem nove livros publicados. Sua obra já foi adaptada para o cinema e o teatro, tendo sido publicada em Portugal, Inglaterra e toda a América Latina

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