Revolucionárias | Ângela Lopes de Almeida, a mulher

Ela foi a primeira trans no Brasil a mudar o nome do registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual

30.10.2017  |  Por: Karla Monteiro

image
Revolucionárias | Ângela Lopes de Almeida, a mulher

“Meu nome não se encaixava mais na minha identidade. E não havia jurisprudência que me permitisse entrar com uma ação de retificação. Tivemos que criar um discurso jurídico. A primeira audiência com o juiz foi muito emocionante. Estava lá toda a cidade de São Carlos”

Há 12 anos, Ângela Lopes, hoje com 43, tornou-se a primeira trans no Brasil a mudar o nome do registro civil sem a necessidade de cirurgia de resignação sexual. A sentença foi proferida pelo juiz Paulo César Scanavez, na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. No mesmo ano, o STF reconheceu como direito legal a alteração do nome de pessoas transgênero.

Até a vitória, Ângela percorreu todas as estações. Aos 7, já era espancada pelo pai por ter “trejeitos femininos”. Aos 12, foi expulsa de casa. Morando na rua, sofreu estupros e episódios de violência que a deixaram entre a vida e a morte. Com 16, decidiu que para sobreviver precisava se esconder atrás da fantasia do garoto que não era. Aos 25, finalmente saiu do casulo.

A decisão de mudar de nome veio quando não era mais possível conviver com o corpo em transformação hormonal e o nome masculino, que Ângela não revela. A partir da sentença favorável conquistada por ela, juízes de todo o país passaram a se basear em seu caso para proferir veredictos.

 

Ela por ela

“Eu não me descobri, porque sempre fui essa mulher. Com 7 anos, comecei a ser punida pelo meu pai. Esse pai machista, patriarcal e cruel, que me espancou dos 7 aos 12 anos. Um dia ele falou: ‘Ou você muda ou vai morar na rua.’ Como não havia nada em mim que fosse passível de mudança, escolhi ir para rua.

Fui estuprada, sofri vários episódios de violência. Num desses episódios, entre a vida e a morte, entendi: eu ia ter que enfrentar o sistema. Ia ter que enfrentar a própria ideia de Deus: como romper a lógica da masculinidade e se transformar em mulher? Era afrontar o divino. Estava completamente sozinha. Costumamos romantizar pai e mãe, por uma questão cultural e cristã. A gente cria aquele mito de que nossos pais vão nos proteger e amar. Meu pai e minha mãe foram os que mais me feriram.

Há 30 anos, não tínhamos sistemas legais de proteção, não havia direitos humanos, políticas para a infância e juventude. A violência era autorizada. Depois de um estupro que me deixou hospitalizada, minha mãe resolveu me acolher minimamente. Voltei para casa e, aos 16 anos, fui procurar emprego, vestida como um garotinho. Fiz entrevista num cartório e passei para fazer serviços de rua. Trabalhava no Segundo Tabelião de Notas de São Carlos.

Dez anos depois, já ocupando um bom cargo no cartório, sendo a melhor profissional, começou a minha transição. Já estava me hormonizando, deixei o cabelo crescer e os conflitos começaram. Meu nome não se encaixava mais na minha identidade. Era 2001 e não havia jurisprudência que me permitisse entrar com uma ação de retificação. Mesmo sabendo disso, uma tarde peguei a minha bolsa e fui falar com o juiz da cidade, que era também corregedor do cartório, o doutor Paulo César Scanavez. Minha história já era conhecida em São Carlos.

Imagina, a primeira trans a ocupar um espaço formal de trabalho numa cidade de 150 mil habitantes? Bati na porta do juiz e falei: ‘Olha, eu não consigo mais viver assim.” O doutor Paulo me disse que a Lei de Registros Públicos não dava brechas… Mas me disse para procurar um advogado, pois havia o conflito de identidade. Contratei a doutora Roseli Pozze, uma pessoa maravilhosa. Pra ela, foi um grande desafio. Tivemos que criar um discurso jurídico. Contratamos duas linguistas para acompanhar o caso, pois estávamos criando uma retórica: constrangimento público, ausência de motivação para viver em sociedade, necessidade de adequação… Fomos nessa linha.

O processo caiu nas mãos do doutor Paulo. A primeira audiência foi muito emocionante. Estava lá toda a cidade de São Carlos. Ele sentenciou favorável. Mas o Ministério Público pediu um laudo fenótipo, uma coisa extremamente violenta, que não se pede mais. No fim, o MP também sentenciou favorável. Foi um processo muito rápido, que correu em três meses. No mesmo ano, a Roberta Close, que vinha desde 1995 tentando mudar o nome, também conseguiu parecer favorável no STF. Eram casos diferentes, porque ela fez a cirurgia, tinha todos os laudos.

Ainda hoje não há uma lei.  Temos decisões baseadas em interpretações jurídicas. Quero lutar por políticas efetivas. Por isso penso em sair candidata a vereadora em 2020. Estamos num momento político muito crítico. Se essa onda de extrema direita que está sendo armada vingar, o que será de nós? Serei a primeira na fila de extermínio.”

0 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *