Revolucionárias | Eliane Dias, a dona do rap
Primeira empresária do rap no Brasil, ela é também considerada uma das mais importantes vozes femininas negras no país
30.10.2017 | Por: Karla Monteiro
“Quando alguma menina chega e me diz que sou referência, levo um susto. Não me vejo como referência. Cada mulher é uma resistência. Eu sofro racismo todos os dias. Não consigo me lembrar de um dia em que não tenha sofrido racismo”
Na aurora dos anos 90, o rap tomou São Paulo de assalto. De repente, a cidade começou a falar, a se vestir e a se comportar como “os mano”. À frente do movimento, postura marrenta, inacessível à mídia, estava o líder dos Racionais MC, Mano Brown. Duas décadas depois, ele parece outro homem. Acabou de lançar o primeiro disco solo, com pegada Marvin Gaye. E até dá entrevistas. A responsável pela transformação é Eliane Dias, sua mulher, com quem está casado há 23 anos.
Formada em Direito, Eliane se tornou a primeira empresária do rap, um clube do Bolinha que até bem pouco tempo atrás não tinha espaço para mulheres, em cima do palco ou nas posições fora dele. Ela assumiu a Boogie Naipe, produtora criada pelos Racionais MC (Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay), que hoje cuida da carreira de várias bandas. Mas, antes disso, chegou a ser repelida pelo machismo dos manos. Com o passaporte na mão, foi impedida de participar de uma turnê por ser mulher.
Hoje com 46 anos, além de empresária de bandas, Eliane é considerada uma das mais importantes vozes de causas femininas e negras do país, atuando como coordenadora do programa antirracismo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o S.O.S.
Ela por ela
“Sempre fui uma mulher de frente. Já trabalhava na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo havia três anos quando me chamaram para produzir os Racionais, em 2012. O machismo da banda havia me impulsionado a seguir outro caminho.
Mas vou contar do começo: na casa da minha mãe não tinha pai – e sou a filha mais velha. Então tomei conta da casa, dos meus irmãos. Comecei a trabalhar com 9 anos. Ao mesmo tempo tive que marcar meu território. Minha mãe teve uma filha-problema. Eu não tolerava os namorados dela dentro de casa e botava o marido da minha irmã no lugar dele. Fui sempre aquele bicho bravo, a encrenca.
Ser mulher, negra, morar na periferia e não ter um homem em casa é foda. O homem só respeita outro homem. Na minha casa não tinha homem, então eu tinha que bancar. Nasci liderança. Conheci o Pedro Paulo (Mano Brown) dentro da minha casa. Meu primo, o Ice Blue, o levou lá. Eu não era o tipo de moça que ia a festas. Não tinha esse tempo. Na época, trabalhava de dia em escritório e fazia trabalhos de modelo à noite.
Depois que nos casamos, fui levando a minha vida paralela à dele. Nunca aceitei submissão. A única coisa que fiz foi continuar levando a minha vida. Quando os filhos nasceram, parei de trabalhar por seis anos. Aí um dia o Pedro Paulo me pediu para eu tirar passaporte e visto para a família toda, para uma viagem com a banda para os Estados Unidos. Logo depois, veio me dizer: ‘Você não vai mais. O Primo Preto (empresário musical dos Racionais) disse que não é legal ir mulher.’ Achei um desrespeito muito grande. Fiquei ferida mortalmente. Quando ele voltou eu tinha me matriculado em um cursinho pré-vestibular. Fiz Direito na Universidade Municipal de São Caetano. Assim que me formei tirei a carteira da OAB, trabalhei em escritório. Ganhava muito bem.
Depois fui para a articulação política. Naquele tempo, o mundo do rap, o mundo da periferia era dos homens. Nós, as mulheres negras, não tínhamos espaço, ainda mais para cuidar de documentos, gerenciar uma banda. E, de repente, me chamaram para cuidar dos Racionais. Fiquei pensando: como, se antes eu não podia nem viajar com eles? Eu já estava na política, sou uma articuladora, sou respeitada nesse mundo. Não queria cuidar da banda, demorei três semanas para responder. Hoje cuido de tudo da produtora Boogie Naipe.
Pedro Paulo diz que agora ele é menos machista. E é mesmo. De vez em quando ainda precisa ser corrigido.
Minha vida se divide em milhares de coisas. Trabalho na Fundação Julita (ONG que atende crianças, jovens e famílias em situação de vulnerabilidade), temos um projeto com meninas, de empoderamento feminino. Fundei a ONG Capão Cidadão, que conta hoje com 167 crianças. Já tivemos 600, mas com essa crise tivemos que cortar. Quando alguma menina chega e me diz que sou referência, levo um susto. Não me vejo como referência. Cada mulher com a sua especificidade é uma resistência.
Sofro racismo todos os dias. Não consigo me lembrar de um dia em que não tenha sofrido racismo. Luto pela igualdade de gênero e raça, porque são as coisas que me afetaram a vida inteira. Uma mulher negra não tem credibilidade. Às vezes fico cansada de conviver com tanta estupidez, calhordice. E penso, ah, vou me recolher. Mas, no fim das contas, estou sempre aqui.”

Eliane na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde coordena um programa antirracismo | Foto: Ica Martinez
– Veja a lista com todas as revolucionárias –
0 Comentários