Sapatilhas, racismo e o clichê da superação
Ingrid Silva foi da periferia do Rio para os palcos internacionais. Mas hoje questiona a narrativa criada em cima de sua própria história
03.04.2019 | Por: Luciana Paulino
Foto: Fernanda Frazão
Ingrid Silva é uma estrela em ascensão. A carioca nascida e criada em Benfica, no Rio de Janeiro, é hoje uma das bailarinas mais ilustres do mundo. Brilha nos palcos não somente com a sua beleza e técnica, mas também com seu discurso potente sobre diversidade e representatividade negra e feminina.
Aos 8 anos, Ingrid entrou para o projeto Dançando Para Não Dançar, iniciativa dedicada a levar balé para as comunidades do Rio de Janeiro. As aulas eram uma válvula de escape para uma menina hiperativa e cheia de energia. “Eu já fazia natação e uma série de atividades esportivas. Quando surgiu a oportunidade de fazer balé, minha mãe falou: vai lá gastar essa energia e fazer piruetas”, conta rindo.
A história, claro, chamou a atenção da imprensa brasileira e internacional, ávida por uma narrativa repleta de drama e superação. Tanto que nos últimos anos foram publicadas diversas reportagens contando sua trajetória. Todas sob o pilar da criança negra e pobre que supera as adversidades e através do seu esforço descomunal vence.
Ela chegou a estrelar um filme publicitário que resume sua trajetória. E, sim, é bonito. Vemos ali sua rotina desde pequena, vemos a dedicação, o esforço, a chegada em Nova York e o ingresso na Dance Theatre of Harlem, quando iniciou a carreira profissional.
Todo esse interesse em sua história é respeitável, mas como ela mesma ressalta, há uma pegadinha aí. Pois é uma maneira subjetiva de a sociedade dizer que para um negro vencer é preciso sempre ser melhor do que outros, ou seja, uma espécie de unicórnio diferentão dotado de superpoderes. É isso que incomoda Ingrid. “Eu sei que minha história inspira por eu ser uma menina negra vinda da periferia. Mas é importante ressaltar que meus passos vêm de uma superação através do autoconhecimento. Quando reconhecemos nossas potências e investimos nelas, nada pode nos deter.”
Até então não tinha ninguém com quem eu me identificasse na profissão
O incômodo com esse estereótipo e a vontade de inspirar outras mulheres, não só através da dança, fez com que Ingrid criasse a plataforma digital EmpowHer New York, que cria uma rede onde mulheres podem compartilhar suas histórias e dividir experiências. “A ideia é que a audiência veja essas mulheres comuns como fonte de inspiração, e que isso as faça desengavetar sonhos e seguir adiante”, diz Ingrid.
E disso ela entende: “Foi um sonho conhecer outras bailarinas profissionais negras. Até então não tinha ninguém com quem eu me identificasse na profissão.”
Quando chegou ao Dance Theatre of Harlem, Ingrid encontrou um ambiente familiar. Fundada há 50 anos por Arthur Mitchell, a companhia sempre teve como meta dar chance a bailarinos negros. “Este ambiente com bailarinos negros como protagonistas se tornou muito inspirador para mim. Eles foram uma das primeiras companhias de negros nos Estados Unidos. Fui muito bem recebida”, conta.
A própria estética do balé é voltada para a ideia de bailarinas sempre brancas, a começar pela sapatilha, que só é vendida em modelos claros, provocando um contraste com o tom de pele de Ingrid. Para resolver tal dilema, a Dance Theatre of Harlem tem como uma de suas assinaturas recomendar que seus bailarinos pintem suas sapatilhas com maquiagens. Ingrid aprendeu a tática e desde então suas sapatilhas são da cor de sua pele.
Hoje, Ingrid faz questão de ir além de sua história pessoal de superação e lembrar que é a sociedade que cria barreiras para que outras mulheres negras realizem seus sonhos. O racismo, o sexismo e toda uma série de preconceitos é que acabam negligenciando potências e filtrando quem pode ou não realizar seus sonhos.
Ingrid samba, ou melhor, faz plié na cara da sociedade, se apresenta como uma das bailarinas mais promissoras de sua geração e quer levar outras mulheres com ela.
Luciana Paulino é relações-públicas paulistana. Atua como consultora de comunicação e está à frente da plataforma digital Black Bird, que propõe um olhar inclusivo para experiências de viagem
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