Sarah Morris chega à Ilha da Fantasia, bem aqui onde estamos

De volta ao Brasil, país com que flerta desde os anos 90, a artista americana fala à Hysteria sobre Glenn Greenwald, machismo na arte e como o Brasil é exceção por ter mulheres liderando rankings de preços de obras

23.09.2019  |  Por: Suzana Velasco

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Sarah Morris chega à Ilha da Fantasia, bem aqui onde estamos

Sarah Morris chega ao aeroporto da Ilha da Fantasia e vê três pessoas no estande de um banco. Os dois homens estão sentados, é a mulher que limpa a janela. A cena irrita a artista americana, mas ela logo está fascinada com a praia cheia num dia de inverno de mais de 30 graus, com a sensualidade, o sonho: “Em que outro lugar um arquiteto homem poderia partir de formas femininas para criar?”, ela pergunta, sobre Oscar Niemeyer, talvez um tanto ingenuamente.

A Ilha da Fantasia é o Rio de Janeiro, ou um certo Brasil com que Sarah flerta desde os anos 1990, quando visitou o país pela primeira vez. O nome surgiu na semana passada, quando Sarah veio à cidade apresentar seu filme Rio na feira ArtRio e inaugurar a exposição individual Today We Find Ourselves At An Impasse (Hoje Nos Encontramos Num Empasse), em cartaz na Carpintaria – a “filial” carioca da galeria Fortes D’Aloia & Gabriel – até 19 de outubro. Alguém assistiu à obra, filmada na cidade em 2011, e a lembrou da série Fantasy Island, dos anos 1980, em que uma ilha no Pacífico oferecia a realização de todos os desejos – mas sempre com um preço a pagar.

“Eu via essa série aos 12 anos, era um lugar onde tudo parecia fantástico, mágico, mas sempre havia um lado obscuro. A fantasia, para ser realizada, tem um lado que talvez não se queira ver”, diz Sarah, em entrevista na galeria. “Gosto da fantasia cinematográfica do Brasil dos anos 1960 que se encontra com o momento contemporâneo. Ainda se exporta uma fantasia do Brasil, o futebol que virou a imaginação de meninos e meninas pelo mundo, a arquitetura, mas agora isso está mudando. O mundo vê a Amazônia, a situação política.”

De batom vermelho, grandes argolas douradas, o olhar fixo na interlocutora, Sarah não aparenta os 52 anos que tem – ou o imaginário que ainda se tem de uma mulher de mais de 50. Os assuntos se sucedem rapidamente, enquanto o café esfria, mas ela parece não se importar. Em sua característica livre associação de ideias, a artista, que costuma dizer que a pintura é sempre política, fala sobre misoginia, terraplanistas e o questionamento da ciência, protestos em Hong Kong, Glenn Greenwald, Donald Trump e Michelle Obama. Ela levou a situação política brasileira para as telas da exposição no Rio, mas de forma nada direta ou literal, seguindo seu vocabulário de cores e geometria.

Uma das pinturas da série Sound Graph (Gráfico de Som) é Num Grande Acordo Nacional, referência ao trecho do áudio vazado entre o então senador Romero Jucá e o empresário Sérgio Machado, especulando sobre o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Na tela, o áudio ganha as formas abstratas de um gráfico de som. “Amo olhar para o modo como as cores afetam o ser humano, e a vida eletrônica molda a forma pela qual percebemos dados, conversas. Eu pensei que poderia fazer isso de modo diferente pela pintura.”

Olhando para o mundo você vê toda sorte de misoginia. Mas isso não é próprio da arte, e sim das instituições

A exposição foi toda imaginada para o Brasil, com as pistas dadas por títulos como Agosto 2019 (Rio) e Aqui Tudo Parece Que É Construção E Já É Ruína – a frase de Lévi-Strauss dita por Caetano Veloso na música Fora da Ordem, e desde então muito usada para se falar das contradições do Brasil. “Queria lidar com a situação de hoje na Ilha da Fantasia”, ela diz, rindo. “O áudio foi uma fagulha política, não importa tanto de quem é, mas o fato de que ele incentiva a imaginação do público sobre quem está no comando. Isso não só no Brasil, mas nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Turquia. Ainda que você esteja na Ilha da Fantasia não pode evitar a política. Ela existe mesmo na sua negação.”

Além de ter assistentes brasileiros, Sarah lê o jornal britânico The Guardian todos os dias e acha curioso que o jornalista americano Glenn Greenwald – que expôs ao mundo mecanismos de vigilância da inteligência americana revelados por Edward Snowden e, recentemente, os áudios dos procuradores e do então juiz da Lava-Jato, Sergio Moro – more na tal da Ilha da Fantasia. Mas acredita que a proliferação de áudios não acaba com as dúvidas dos cidadãos em tempos de fake news.

“A gente não teve vazamentos de áudio na América. Tivemos o vídeo de Trump, mas quem liga para gênero? Foi encarado como mais uma conversa de vestiário, apesar de ofensivo para metade da população”, diz ela, referindo-se ao vídeo em que Trump fala sobre suas tentativas de transar com uma mulher casada e diz que pode assediar mulheres porque é uma estrela. “Infelizmente a gente pode falar muito sobre fluidez de gênero, mas eu quero ver quando haverá igualdade, os mesmos salários para homens e mulheres. Não tivemos uma presidente na América. Mas isso está mudando enquanto nós duas conversamos.”

Sarah conta que foi criada por pais liberais, que nunca a impediram de fazer nada, e cresceu sob a influência de artistas mulheres desafiadoras como Cindy Sherman, com a impressão de que qualquer coisa poderia ser feita. Só se deu conta da gravidade do machismo depois de já ter algum reconhecimento como artista. “Olhando para o mundo você vê toda sorte de misoginia. Está na nossa cara. Mas isso não é próprio da arte, e sim das instituições. No mundo da arte, isso se reflete com dinheiro, com o grande financiamento para artistas homens e o preço mais baixo de obras de mulheres.”

No Brasil, artistas como Beatriz Milhazes e Adriana Varejão lideram rankings de preços de obras. Mas são exceções, Sarah diz. A artista cita uma pesquisa do jornal alemão Die Zeit, que constatou que artistas mulheres em geral vendem por metade do preço de seus colegas homens. “Pela lente institucional, talvez seja necessário ter 70 anos para fazer uma grande individual na América como mulher”, diz ela, com muitas individuais em galerias e museus mundo afora. De acordo com um estudo feito em conjunto pela ArtNet News com a In Other Words e divulgado na semana passada, apenas 11% das aquisições e 14% das exposições nos 26 principais museus americanos na última década foram de trabalhos de artistas mulheres. O mesmo relatório mostra de mais de US$ 196,6 bilhões foram gastos em leilões de arte entre 2018 e maio de 2019 – dos quais só US$ 4 milhões (ou 2%) se referem a trabalhos de mulheres.

 

Apesar de imersa no mundo de comércio da arte – “Para dar significado ao seu trabalho você não pode evitar o sistema de objetos”, diz –, Sarah hoje busca instigar formas de diálogo, de “conversa fluida”. Ela cita seu filme Finite and Infinite Games (2017), em que o teórico e escritor alemão Alexander Kuge lê trechos do livro homônimo de James Carse e conversa com a artista sobre a ideia de que o mundo está dividido em pessoas que jogam para ganhar e outras que percebem o mundo em constante transformação. A obra foi filmada no milionário prédio da Filarmônica de Hamburgo, na Alemanha, antes de sua inauguração.

“O mundo não precisa de mais música no momento, precisa de provocação, de um aviso. Então fiz uma performance que nunca acontecerá de fato ali, num prédio criado sobre uma estrutura histórica para uma filarmônica que não existe ainda. É um gesto arquitetônico acaba sendo um tipo de gesto vazio. Me faz pensar para onde estamos indo como civilização”, afirma ela. “Vivemos num mundo de objetos mas o mundo está acabando. No fim das contas, tento me concentrar no trabalho de propor novos modos de pensar. A palavras não são suficientes para mim, é claro, ou eu não pintaria. É mais desafiador inventar um vocabulário visual, novas formas de percepção.”

 

Suzana Velasco é jornalista, editora e pesquisadora. Trabalhou por 12 anos no jornal O Globo, nos suplementos de cultura Segundo Caderno e Prosa. Colabora com veículos como Blog do IMS, Revista ZUM,Revista Continente e O Globo. É doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio

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