‘Seinfeld’ x ‘Friends’: quem envelheceu melhor?

Uma batalha entre duas séries icônicas dos anos 90 em termos de política identitária

11.12.2019  |  Por: Maria Clara Drummond

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‘Seinfeld’ x ‘Friends’: quem envelheceu melhor?

No episódio The Yadda Yadda, que foi ao ar durante a sétima temporada de Seinfeld, em 1997, o dentista Tim Whatley anuncia sua conversão ao judaísmo, imediatamente emendando com uma piada clássica do humor judaico. Jerry fica ofendido, não como judeu, ele frisa, mas como comediante. No vocabulário atual, Whatley estaria acumulando o máximo de “lugares de fala” para aumentar seu repertório de piadas, como católico, sua antiga religião, como dentista, e agora, como judeu. Eis que Jerry comete o erro de contar uma piada de dentista, o que o faz ser hostilizado na comunidade odontológica, devido à sua reputação de “anti-dentite” (que, em inglês, rima com anti-semite).

Este ano, Seinfeld completou o trigésimo aniversário desde sua estreia, mais atual que nunca. Como presente, a Netflix anunciou que comprou os direitos de exibição da série para substituir a perda de Friends. Ambas são sitcoms icônicas dos anos 90 que geraram inúmeros herdeiros na televisão. Entretanto, o ethos de um e de outro vão em direções opostas. Friends é aspiracional, com personagens amorosos e de boa índole, que conquistam seus sonhos e amadurecem ao longo dos dez anos de exibição
– ou seja, tem arcos dramáticos de ascensão. Em Seinfeld, ninguém se transforma, ninguém aprende, ninguém é carinhoso, não há nenhuma moral edificante. O mote cunhado por Larry David, criador da série junto com Jerry Seinfeld, é justamente “no hugging, no learning” (sem abraços, sem aprendizados). O principal objetivo da dupla sempre foi conceber uma comédia altamente eficaz, que fizesse rir – daí a simplicidade do epítome “um programa sobre o nada”.

O exemplo perfeito desse mote que perpassa as dez temporadas é o episódio final. Nele, Jerry, George, Kramer e Elaine são castigados por suas atitudes mesquinhas ao serem condenados diante de um tribunal que reúne os depoimentos de diversos coadjuvantes prejudicados pelo quarteto. Na última cena, vemos os quatro sentados numa cela, repetindo o mesmo diálogo sobre botões de camisa presente no primeiro episódio. O posicionamento de cada um é feito para emular sua habitual mesa retangular do Monk’s Café. “No hugging, no learning”: nem mesmo a prisão tem força suficiente para ser um motor de transformação naquelas pessoas.

A solução, até um tanto moralista, evidencia que o programa jamais endossou a insensibilidade dos seus protagonistas. O distanciamento do texto em relação aos personagens é visível mesmo durante os enredos mais arriscados, como os que envolvem temas delicados como feminismo, racismo e homofobia. (Há exceções, evidentemente, como o infame The Puerto Rican Day, que foi considerado ofensivo ainda na época que foi ao ar, em 1998. A emissora NBC formalizou um pedido de desculpas à comunidade porto-riquenha e retirou episódio da temporada de reprises.)

Nesses casos, o humor se situa nas múltiplas camadas da situação retratada, o que torna o posicionamento ideológico do programa ambíguo, ao menos numa leitura superficial. The Outing é um bom exemplo de trama que nos dias de hoje pode ser considerada homofóbica pela audiência mais jovem, como os centennials e millenials. Jerry e George são confundidos por uma repórter que acha que eles são um casal, o que desencadeia um surto de autoconsciência, em que eles simultaneamente negam a homossexualidade, enquanto repetem: “Não que tenha nada de errado com isso!” Na época, o episódio ganhou um prêmio da ONG Glaad (Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação). The Outing denuncia a hipocrisia de certo progressismo bem-intencionado que ainda assim manifesta uma forma discreta de homofobia liberal, encarnado pelo mote “don’t ask don’t tell” da era Clinton.

A filosofia misantropa dos autores vai muito além de qualquer misoginia que porventura possam ter

Os personagens de Seinfeld são racistas, sabem que são racistas, tentam consertar seu racismo, mas não são bem-sucedidos. Em The Cigar Store Indian, Jerry se interessa por Winona, uma mulher nativo-americana, mas sua falta de cuidado o faz utilizar expressões que ofendem os povos ameríndios. É engraçado ver sua exasperação ao perceber que cometeu mais uma gafe. Em The Diplomat’s Club, George diz para seu chefe, que é negro, que ele se parece com o boxeador Sugar Ray Leonard. Para provar
que não é racista, George procura alguém que possa fingir ser seu amigo negro. Em ambos os casos, é explícito que a piada é com o preconceito dos personagens, seguindo a regra de ouro do humor moderno: rir do opressor, não do oprimido.

É nesse sentido que fica ainda mais evidenciada a justaposição com Friends. Ali, os equívocos em relação a preconceitos são estruturais na gênese da história: há romantização de relacionamentos abusivos, completa falta de diversidade e inúmeras piadas homofóbicas. Os LGBTs são quase sempre retratados como motivo de ridicularização enquanto a hostilidade em si é pouco problematizada. Ainda assim, o programa resiste como um ícone aspiracional para aqueles que sequer haviam nascido na época de sua estreia, em 1994. É um escape para um mundo com romance, amizades estáveis pré-internet, empregos interessantes, longe da recessão econômica da atualidade, tudo isso embalado numa estética Pinterest. Em setembro, em comemoração ao aniversário de 25 anos, a Ralph Lauren criou uma linha de 74 peças em sua homenagem – Rachel Green, interpretada por Jennifer Aniston, trabalhava na marca. Enquanto isso, Seinfeld desperta no máximo a vontade de adquirir calças jeans pós-irônicas.

Até Elaine Benes, que foi revisitada como um dos maiores ícones do feminismo televisivo, não é exatamente alguém que almejamos ser – ainda que seja explícito que se trata da mais inteligente, bem-sucedida e politizada do grupo. “Elaine sairia com qualquer pessoa que estivesse interessada nela. Há um evidente problema de autoestima. Ela é louca, passa o tempo inteiro naquele apartamento horrível com aqueles três caras, e deveria procurar um analista. Não acho que ela transformou ser solteira e neurótica em algo cool”, opina sua intérprete, Julia Louis Dreyfus, em entrevista pra a New York Magazine em 1998.

No início, Elaine Benes não existia na série e sequer participa do piloto, mas foi incluída por causa de uma demanda dos produtores, que sentiram falta de uma figura feminina no elenco. “Achamos então que poderia ser engraçado colocar uma mulher inteligente para interagir com três homens idiotas”, diz Jerry. Sua personalidade tem poucas características consideradas femininas – ela se encaixaria no arquétipo moderno da “cool girl”, expressão cunhada pela escritora Gillian Flynn no romance Garota Exemplar, de 2012. A “cool girl” é, em suma, uma mulher atraente que se comporta como um dos garotos, sem o mimimi atribuído às mulheres, como dietas e reclamações.

Mas a “cool girl” é necessariamente uma construção comportamental feminina a fim de emular o que os homens gostariam numa mulher: alguém que divide os gostos e hobbies, mas não cria caso. Elaine Benes é uma invenção de dois homens heteros pouco afeitos a se enquadrar em etiquetas civilizatórias, e é isso que lhe salva de ser uma “cool girl”. A filosofia misantropa dos autores vai muito além de qualquer misoginia que porventura possam ter. É uma filosofia democrática no seu desprezo pela Humanidade: homens não são superiores a mulheres, ambos são desprezíveis. Elaine Benes é de fato feminista porque não quer agradar ninguém. Talvez a personagem não ganhe uma linha de roupa dedicada a si em alguma marca de luxo, mas é nela que devemos, de fato, nos inspirar.

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

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