Ser militante é, mais do que nunca, praticar o autocuidado

Ativista dos direitos humanos com foco em raça e gênero, jornalista fala do ativismo de mulheres negras em meio ao caos

19.11.2018  |  Por: Juliana Gonçalves

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Ser militante é, mais do que nunca, praticar o autocuidado

Laiza Ferreira | Piscina

Não foi sem dor, ou sem medo, que tomei consciência do tamanho da tarefa que é combater o racismo e o patriarcado num país fortemente colonial, comandado em todas as suas esferas por homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais, defensores de uma família que não é a minha – negra, diversa e estendida.

O que é preciso para articular cada vez mais estratégias de resistência, estar nas ruas, nos coletivos, nas aulas abertas, nas reuniões organizativas? Como meu corpo e minha mente devem estar para que eu possa acolher manas machucadas pela vida, para que tenha condições reais de conversar com os conhecidos e criar a possibilidade de destruir muros e construir pontes?

Embora tenha tomado essa consciência há cerca de dois anos, só neste 2018 ouvi as vozes das mais velhas que me alertavam de que não há luta com um corpo adoecido pelo descuido. Não há desejo de resistência que impere perante uma mente cansada.

Se o amor é político, o autoamor é revolucionário. Só sadias conseguimos dar as mãos para outras manas, incentivar e fortalecer o amor-próprio, nesse processo de diálogo entre individual e coletivo que nos impulsiona para frente.

Cuidar do meu corpo, da minha ancestralidade, da minha casa, do quilombo que construí, está sendo imperativo para continuar em movimento e, sobretudo, acreditando que apenas com luta e organização podemos enfrentar o cenário político de ódio que se aprofundou.

Se eu pudesse dar uma dica: sempre que sentir que o mundo tomou sua energia, tome um banho de manjericão. Macere algumas folhas, jogue na água quente e depois do banho se molhe da cabeça aos pés. Depois, se já tiver construído o seu quilombo, lugar seguro, de resistência e de afeto, aquilombe-se: construa uma rede de amigos, de ativistas, onde se possa falar com honestidade sobre a sociedade que precisamos construir juntos. Lembre-se de que você precisa estar bem para caminhar e ajudar outras manas a formar outros quilombos. Você não é a única e nem está sozinha, somos muitas. Encontre outras e prossiga.

Acredito na força de todas as mulheres que são, sim, a vanguarda dos movimentos sociais

Agora é hora de ficarmos juntas, de desenharmos estratégias objetivas de apoio e ampliação das nossas redes de cuidado e resistência. Enquanto mulheres negras, indígenas e afro-indígenas, ninguém melhor do que nós para saber quais são as mais variadas estratégias de cuidados e luta. Vamos praticá-las!

Se o momento histórico é de dissenso, seguiremos fortes na contramão, mais e mais resistentes. O acolhimento de nós mesmas e das outras deve ser a tônica da luta. No acolhimento e na formação finca-se a potência do nosso amanhã.

Sempre que possível precisamos sentar em rodas, pequenas e grandes. Continuar os papos todos que se criaram nestes últimos tempos, do micro ao macro, das margens para o centro. É hora de intensificar o exercício de nos valer dos acúmulos que fizemos, os organizativos e políticos. Nossas redes de cuidado devem se transpor do virtual para o real.

Quem não sabia, entendeu nesta última eleição que a virada vai demorar muito mais para vir. Fatalmente, temos questões históricas e estruturais como o racismo e o patriarcado postas, e vencê-las dependerá muito das nossas atuações nos nossos territórios.

O meu autocuidado passa necessariamente por me voltar a uma atuação local. Trocando e construindo com manas que muitas vezes ainda não entenderam a sua própria potência política.

Sei que neste momento parece que vence um Brasil racista e misógino, sabemos que a dominação ideológica capitalista, extremamente liberal, venceu em praça pública. Mas ela sempre esteve aí, massacrando nossos corpos e nossas epistemes. Venceu essa batalha, mas nossa sociedade continua em disputa.

Tudo bem se afastar de tudo também, desabar, deixar doer, e ir se conectando aos poucos. Há tempo. E quando estiver bem para seguir, acolha e tente fortalecer aquela mana que não parou, continuou em pé garantindo que a roda continue a girar.

Eu acredito nas minhas irmãs praticantes da filosofia ubuntu, do asè. Agora é a nossa vez. Acredito na força de todas as mulheres que são, sim, a vanguarda dos movimentos sociais. Tenho visto mulheres brancas darem passos históricos na revisão de seus privilégios e se alinharem nas trincheiras ao nosso lado. Eu acredito, sobretudo porque não ando só.

 

Juliana Gonçalves é jornalista e se dedica à Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e à Cojira/SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial). É mulher negra em movimento que herdou da mãe o gosto pela leitura e a necessidade da escrita. Vive o jornalismo, namora a poesia e gosta do abstrato. Escreve sobre sua condição no mundo: mulher, negra, mãe, periférica, afrolatina, feminista e, quiçá, livre

 

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