Sexismo à moda do surfe
Quantas vezes um homem que eu não conhecia tentou me empurrar em uma onda, sem me perguntar se eu queria? Ou simplesmente dropar na minha frente? Podemos categorizar como bondade um ato que visa apenas as mulheres?
07.06.2022 | Por: Valérie Bourdeau
O mar estava quase flat há uns dias. Ainda tava rolando umas ondinhas do último swell – como se diz: dava pra brincar. Eu tinha recebido uma nova pranchinha, e estava louca pra experimentá-la. Mandei pra fazer para dias de mar menorzinho. Ela é rosa com quilhas azul-bebê, e chama a atenção.
Quando meu shaper me perguntou de que cor eu queria, eu disse: “Surpreenda-me, apenas certifique-se de que esses idiotas vão me ver no mar. Eu vou surtar se eu ouvir mais uma vez: ah, desculpe, eu não te vi na onda.”
Long story short, eu tinha acabado de contar para ele como eu ficava chateada quando – muitas vezes – os homens usaram isso como desculpa depois de rabear uma onda minha.
“Talvez pudéssemos colocar luzes nela”, ele brincou.
“Acho que eu precisaria de uma buzina também, eu respondi. Meu, e você não sabe o pior. O último swell que entrou tinha altas ondas, pesadas, mas eu sabia que estava pronta. Uma direita perfeita apareceu, grandona, bem onde eu estava sentada. Aquela onda que parece se formar só para você. Sabe?”
Ele acenou com a cabeça.
Comecei a remar. Tinha um cara voltando na minha direção. Ele apenas se virou e começou a remar na onda também. Juro que tivemos contato visual. Estávamos tão perto que eu poderia dizer a cor dos olhos dele.
Enfim, dropei. Ele também. E a seção fechou em mim porque eu não conseguia velocidade suficiente com aquele prego na minha frente. Tomei um caldo com aquela sensação de ser um tênis numa maquina de lavar. E, logo depois, a gente tava perto de novo.
Falei pra ele que era minha a onda. E até pensei que ele me diria que não me viu. Mas não. Ele disse que achava aquela onda muito grande para mim e que eu não seria capaz de fazer o drop.
“Que cara c#z@0! Ele era daqui?”, perguntou meu shaper.
Eu neguei, me perguntando onde os homens traçaram a linha do que é condenável. Quantas vezes contei uma experiência machista na água para meus amigos surfistas (todos homens) justificarem a ação do outro.
Uma vez um cara segurou meu leash, enquanto eu estava conscientemente remando em numa fechadeira, depois de esperar por uma saideira que não viria por 20 minutos. Para quem não surfa, explico: uma onda fechando é uma onda que não tem superfície surfável. O que resta ao surfista é ir reto, no lugar de manobrar. Eu estava congelando, e a única coisa que eu queria era pegar a garrafa térmica de café que eu tinha deixado no meu carro. Não me importava ir reto, só queria sair do mar.
Quando eu conto essas histórias, a reação dos meus amigos, homens, muitas vezes categorizam essas ações de gentileza leviana. Mas podemos realmente categorizar como bondade um ato que visa apenas as mulheres?
Quando eu comecei a surfar, quantas vezes um homem que eu não conhecia tentou me empurrar em uma onda, sem me perguntar se eu queria? Em mais de dois anos de surfe diários, eu nunca vi um homem empurrar outro homem que ele não conhecia em uma onda.
Por sua sutileza, esse sexismo é raramente reconhecido. Dentro e fora da água. E o comportamento acaba banalizado com comentários ainda mais inadequados, com frases do tipo ‘’eu só tava te zoando’’, ‘’eu estava apenas tentando ajudar’’, ou meu favorito: ‘’foi só um elogio’’.
Quando apareci no shaperoom duas semanas depois, meu shaper me entregou uma prancha rosa.
“Fucking love it”, eu disse.
Pra falar verdade, eu me sinto como uma versão badass da Barbie na praia com essa prancha. E assumi totalmente esse papel desde o primeiro dia. Mas esqueço às vezes que essa Barbie foda que pega altas ondas ainda não existe no imaginário popular. O clichê é o da Barbie tirando selfies de biquini com uma prancha ao lado porque é Instagramável. Ou, quem sabe em um cenário vagamente mais otimista, entrando na água e gritando como uma donzela em perigo cada vez que uma onda bate nela.
Quem me conhece sabe em que categoria eu entro. Dias depois de tomar uma quilhada no pé, sou aquela pessoa que coloca silver tape em cima de pontos pra não perder um bom swell. Porém, para os surfistas de finais de semana, parece que algo no cabelo loiro – metade efeito do sol e metade de uma experiência ruim no cabeleireiro – com maiô vermelho minúsculo sob uma prancha de surf rosa chama conselhos não solicitados.
Pelo menos é o que eu pensei depois de puxar o bico numa onda dum meio metrinho que ia fechar. Assim que eu virei a prancha, vi um cara remando na minha direção, numa versão aquática do valente cavaleiro em seu cavalo branco, exceto que sua montaria era uma prancha, e que eu não tinha a menor intenção de ser a princesa nesta história.
“Eu vi que você ficou com medo, ele disse, mas precisa continuar remando. Você não vai se machucar, é pequeno hoje. Você rema, rema, rema, e quando sente a onda te levando, você olha para a praia e sobe na prancha.”
Eu olhei para ele, sem palavras, enquanto ele continuava me dando essa aula de surfe para iniciantes. Eu vi ele pegar algumas ondas enquanto eu esperava o set, o que não foi muito surpreendente. Por outro lado, eu ainda não havia surfado uma onda para que ele pudesse julgar a legitimidade de sua intervenção.
“Essa prancha rosa vai me prejudicar”, pensei.
“Desculpe, mas não posso falar e surfar, prefiro focar nas ondas”, eu respondi, tentando interromper o monólogo.
Um set estava se formando ao fundo, então comecei a remar até o pico, seguido pelo meu autoproclamado professor.
“Vai, vai, vai“, ele começou a gritar quando a primeira onda chegou perto da gente.
Eu suspirei. A de trás era melhor.
“A próxima vai”, ele me falou, otimista.
Queria revirar os olhos, mas sou muito bem educada.
“Vou mesmo”, devolvi, irritada. Quero ouvir o barulho do mar, c@r@lh0.
Remando na segunda onda, percebi ele ali, na mesma direção, pertinho de mim.
Senti ele querer me empurrar na onda.
“Não me toque”, grito, chateada.
Ele agarra meus pés para me empurrar. Agito minha perna para ele me soltar.
“Eu disse para você não me tocar”, digo assinando com mais um palavrão.
Sou muito educada, mas também sou de taurina. Quem sabe, sabe.
“Só estou tentando ajudar”, diz ele, ofendido.
“Mas não preciso da sua ajuda”, eu devolvo antes de pegar a onda que se aproxima – e surfar, devo acrescentar pela anedota, bem melhor que ele.
Saindo do mar, encontro um cara que conheço.
“Eaiiii. Irada a prancha nova”, diz.
“Obriga…”, eu comecei.
“Você deveria fazer long da próxima vez. É muito mais bonito ver uma mulher surfando long que pranchina.”
É. Há um longo caminho pela frente.
Valérie Bourdeau é uma escritora e editora franco-canadense que se apaixonou pelo Brasil por meio do oceano e da musicalidade da língua portuguesa
0 Comentários