Sinônimos e sentidos

Isabel Guéron faz reflexões a partir de uma palavra temida escrita no crachá em seu peito

14.08.2018  |  Por: Isabel Guéron

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Sinônimos e sentidos

Responsável. Era o que estava escrito no crachá. Preguei o dito cujo na blusa e fiquei aguardando no pátio da escola; tinha chegado cedo pra reunião. Sentei num banco, debaixo do pé de tamarindo, com aquela palavra colada em mim. Responsável pode ser um elogio, uma culpa, uma função.  Um substantivo ou um adjetivo, depende do contexto.

Ali, no caso, responsável era substantivo feminino. Eu, a mãe.

Enquanto esperava entrei no dicionário virtual: três sentidos e mais de 20 sinônimos. Lembrei de quando senti pela primeira vez o peso desse verbete. Uma sensação que atravessou meu corpo recém-costurado da cesárea. Foi no dia que chegamos em casa, vindos da maternidade, os três.  Coloquei o bebê na cama, aquele pacotinho se mexendo, e fiquei olhando minutos a fio.  É comigo, eu pensei. Agora é comigo. E chorei litros.

Depois veio a lida, e tudo foi virando dia a dia. Quando eu vi, já tinha dado centenas de banhos. Trocado milhares de fraldas. E as coisas foram se resolvendo, se modificando. A gente ia dando um jeito, revezando aquele bebê-mochila. Leva pro ensaio, bota pra dormir no estúdio, dá almoço no camarim.  E o que parecia enorme, era dividido em muitas parcelas de afazeres. Infinitos afazeres! A gente vai sendo responsável e irresponsável aos poucos e tenta dormir nos intervalos.

Lembrei de uma noite em que eu tinha uma festa pra ir e um bebê pra amamentar. Ainda naquela fase que não bebe nem água. E eu queria tanto ir, uma saudade de dançar, ver as pessoas. Tirei meu leite por 50 minutos, na cozinha da casa da minha mãe. Na hora de passar para o recipiente deixei derramar tudo, sem querer. Sentei e chorei. Aquela tarefa, aquela incumbência. Nunca mais eu vou sair à noite, pensei. Mas fui, ela quase me obrigou.  Dei de mamar, passei um batom e saí. Aos poucos também ia voltando a ser eu. Uma outra, na verdade.

Será que a minha vida vai voltar ao normal? Perguntei num telefonema pro meu irmão. Vai, ele respondeu. Vai ser uma vida normal, com filho.  Nós rimos. E ficamos conversando um tempão, eu e ele, que até me esqueci do menino. Quando olhei estava adormecido no chão, em cima do tapete.  Uma vez precisei levar comigo pro teatro. Vesti nele um macacãozinho preto e deixei sentado na coxia. Um mini contra-regra, de chupeta. Tá arriscado a criança entrar em cena, alguém falou. Já expliquei que não pode de jeito nenhum, respondi. Não entrou, mas por duas vezes tirou a chupeta da boca e me chamou. Em cena, escutei sua voz. Depois, aprendeu a esperar os aplausos pra fazer barulho. Ou para poder voltar por trás do palco, nos camarins. Feito aquela vez em Brasília, ele com uns 7 ou 8. Botei pra assistir da plateia, a bilheteira deu uma olhada pra mim. Nos agradecimentos eu o vi dando a volta, e assim que a cortina fechou ele entrou pela lateral do palco e me abraçou, aos prantos. Não quero mais ver quando for triste, me disse. Está bem, prometi.

Depois tivemos mais um. Quando o mais velho já sabia fazer seu Nescau sozinho. Uma irresponsabilidade outro filho, gente! Brincou um amigo, felicíssimo com a notícia. Esse veio sem pausas. Trabalhou na minha barriga, até pertinho de nascer. Viajei pro festival de teatro em Minas, grávida, enjoando nas curvas. Obrigando o motorista da van a parar a cada meia hora. Depois que nasceu fez uma temporada inteira comigo em São Paulo, eu voltava rápido do teatro para o hotel e amamentava ainda de maquiagem. No segundo filho eu quase não escapei de mim. Consegui me manter firme no esforço de não me abandonar. Mesmo assim ainda sinto saudades. Saudades de ficar sozinha quando estou com eles, saudades deles quando sou só eu. A vida normal com filhos é assim, acho que pra sempre.

Mais alguns minutos e me chamaram. Entreguei o crachá na secretaria antes de subir. A reunião era sobre o caçula, que anda trocando as letras. Pê com Bê, Efe com Vê, Tê com Dê. Combinamos, eu e a professora, estratégias e exercícios para ajudar a identificar os fonemas corretos. Uma das dicas é ler com ele um livro maior, dividido em capítulos. Ele lê um, e depois me conta o que leu. Tarefa deliciosa de cumprir. Anteontem, depois de terminarmos um livro, virou-se para mim e disse:

“Mãe, o W  na verdade é um M compositor, que estava com uma música na cabeça, tropeçou e ficou ao contrário.”

Acho que eu nem lembro mais como era antes do M virar o W.

 

3 Comentários

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3 respostas para “Sinônimos e sentidos”

  1. Isabel Guéron disse:

    Obrigada, meninas. Fico felicíssima a cada mensagem.
    Beijos!

  2. Samantha Hughes disse:

    Linda parabola Isabel! Todas nos mulheres modernas nos indentificaremos com esse texto! Nao ha mais normas/ maneiras/ lugares para criarmos os nossos filhos! O mais importante e manter a nossa identidade para podermos seguir de exemplo para os nossos filhos. Parabens!

  3. Priscila Rafaelle disse:

    Que texto lindo! O melhor que li sobre o assunto nos últimos tempos. Acho que essa ansiedade latente de uma mulher de 32 anos casada e que está se preparando para ter o primeiro baby até diminuiu, um pouquinho. Gracias por dividir com a gente!

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