Sobre aborto e acolhimento
A dor emocional e física por que passei, mesmo fazendo um procedimento legal, cheio de estrutura e com muito amor envolvido, foi imensa. Por isso me arrepio e não consigo nem mensurar a dor de uma mulher que vai sozinha, escondida, a uma clínica clandestina com estrutura precária
09.10.2017 | Por: Sarah Oliveira
Juliana Coelho
Eu sempre quis ter filho. Sempre. E casei com um cara cujo o maior sonho era ser pai. Estava tudo em sintonia. Portanto, quando engravidei, foi um êxtase. Só que três meses depois sofri um aborto natural e a tristeza veio na mesma medida. Enorme. Assim que soubemos, não foi exatamente culpa o que senti, tá mais pra um vazio, uma angústia como nunca tinha sentido na vida.
Logo que começamos a tentar, eu engravidei. Isso foi algo que me fez sentir poderosa, potente. Mas quando eu realizei a perda, caí de lá do alto. Essa sensação de impotência que se dá ao fazer ultrassom e constatar que o coraçãozinho que estava dentro de você parou de bater é destruidora. Lembro que Thiago pegou na minha mão, com os olhos cheios d’água, e disse: “Vamos tentar de novo e vai dar certo.”
A obstetra, que é minha ginecologista desde os 17 anos, marcou a curetagem. Abro um parênteses aqui pra falar da Dra. Gelde. Ela é de fato uma das pessoas mais importantes de minha vida, sempre estabeleci com ela uma relação de afeto e cumplicidade. Thiago também a adora. Ela foi impecável com a gente neste momento e posteriormente nos nascimentos de nossos filhos. Na ocasião da perda, ela nos explicou que, muitas vezes, não existe um porquê, que simplesmente alguns fetos não se desenvolvem. E que era comum o corpo da mulher ficar preparado pra outra gestação na sequência da quarentena.
Daí veio a curetagem. O procedimento foi feito numa maternidade. Anestesia geral. Pânico de anestesia. Inclusive, peguei o maior trauma depois disso. Thiago, meus irmãos e meus pais me esperaram no quarto onde eu passaria a noite. Tiveram que pedir para retirarem um berço que ficava lá — eu só soube disso depois. Imagina, chegar no quarto dar de cara com um bercinho? Foi uma noite triste. Mas eu fui acolhida.
Acho importante refletir sobre esse acolhimento e sobre todas as informações que me foram passadas nesse momento. Isso foi crucial para eu entender melhor o que estava acontecendo comigo e seguir forte. Fato é que engravidei da Chloe antes mesmo de a quarentena acabar e quando isso aconteceu, eu estava pronta para ser mãe. Corpo e mente preparados e sem medo, graças à minha força, mas principalmente graças ao apoio que tive durante todo o processo.
Bom, eu não falei mais sobre isso pois Chloe (hoje com 4 anos) e Martin (que já tem 1 ano e meio) nasceram cheios de saúde e tomaram conta de minha vida. Mas gostaria de dividir aqui o quanto essa perda me fez pensar naquelas que não têm amparo, naquelas que não têm no governo e, muitas vezes, nem na família algum suporte.
Sim, eu quero falar sobre aborto. A dor emocional e física por que passei, mesmo fazendo um procedimento legal, cheio de estrutura e com muito amor envolvido, foi imensa! Por isso me arrepio e não consigo nem mensurar a dor de uma mulher que vai sozinha, escondida, a uma clínica clandestina com estrutura precária. Se esse filho é fruto de uma violência, então… É muita dor num processo só. Como pode o Estado se eximir da responsabilidade de acolher essa mulher? Como pode uma Comissão composta por 18 homens deliberar sobre um direito que só cabe a cada uma de nós, na privacidade de nossas vidas? Como podem criminalizar o aborto em caso de estupro?
Outro dia compartilhei a história de uma criança de 11 anos (11 anos!) que engravidou após ser estuprada pelo padrasto, em Timon, no Maranhão. Ela não pôde fazer o aborto que, nesses casos, é (porque ainda é) permitido por lei. O procedimento foi negado pela rede de saúde do Estado do Piauí, onde a menininha foi atendida, porque a gravidez estava na 25ª semana. E por quê? O processo todo foi demorado. Até conseguirem descobrir que foi estupro e provarem que foi o padrasto, até constatarem a gravidez, até as leis todas entrarem em ação etc. etc. se passaram 25 semanas. Esta é uma prova cruel de como fazem falta programas e leis que visam ao planejamento familiar e também políticas que discutam o aborto. E não, não podemos impor nossas crenças aos outros. Não podemos legislar sobre o corpo alheio. E da mesma forma que não devemos obrigar ninguém a fazer um aborto, não devemos criar empecilhos para que as que desejam recorram a ele.
As ricas sabem exatamente onde ir caso queiram recorrer a um aborto clandestino limpo e sem grilos. Mas e essa menina, assim como muitas outras em vários cantos do Brasil? Por que elas precisam correr perigo? Não é exagero dizer que elas são as verdadeiras vítimas desta realidade discrepante em que vivemos. É nelas que temos que pensar. Porque essas são as mães de amanhã e cuidar delas é cuidar do nosso futuro.
Sarah Oliveira, mãe de Martin e Chloe, é apresentadora e idealizadora de projetos audiovisuais. Já passou por MTV e Globo até chegar ao GNT, onde criou e apresentou o Viva Voz. Em 2017, estreou seu primeiro projeto criado na internet, a série comportamental O Nosso Amor A Gente Inventa, cuja segunda temporada estreia com exclusividade aqui na Hysteria em 8 de dezembro
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