Sobre bikes e minas

Suzana Nogueira coordenou a equipe que implementou 400km de ciclovia em São Paulo. Arquiteta, pedagoga e pesquisadora, ela fala sobre o desafio de botar a bicicleta na rua e o que as mulheres têm a ver com isso

13.09.2018  |  Por: Alice Galeffi

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Sobre bikes e minas

“Aquela que conseguir ter o domínio da bicicleta, terá o domínio da sua vida”, disse Susan B. Anthony, uma das líderes do movimento feminista dos EUA de 1880, época em que a bicicleta foi fundamental para a mudança na vestimenta das mulheres. Era muito difícil conduzir uma bike com vestidos pesados e cheios de camadas. Mais leveza ao vestir e mais autonomia também: a bicicleta deu mobilidade às mulheres numa época em que ainda eram controladas como posse de maridos, pais e irmãos. 

Hoje, mais de um século depois, a brasileira Suzana Nogueira também está revolucionando o movimento de emancipação feminina através da bicicleta. Só que agora se trata de ocupar espaço e ter representatividade nos cargos decisivos de poder. Ela foi a responsável pela coordenação da implementação de 400 quilômetros de estrutura cicloviária em São Paulo durante a gestão Haddad, além de ser arquiteta, pedagoga e pesquisadora da ocupação feminina nos espaços urbanos.

Suzana trabalha na área de mobilidade urbana há 17 anos e, antes disso, trabalhou na SPTrans, fazendo planejamento de rede de transporte coletivo, e fez parte da equipe que criou o primeiro plano cicloviário do Brasil, em Guarulhos. Ela aprendeu a pedalar com a mãe, na rua, aos 5 anos, e desde então tem uma relação afetiva com a bike como meio de locomoção. Em entrevista, ela conta as realizações e as dificuldades de trabalhar com o que ama.

Quais os maiores desafios que você encontrou durante a implementação dos 400km de ciclovia em SP?

As dificuldades são inúmeras: a escala da cidade é muito grande e é impossível conseguir em uma única ação tornar a rede totalmente conectada. Mas existiram dificuldades financeiras e contratuais, muitas vezes quando uma era resolvida a outra aparecia e vice-versa. 

As principais resistências vieram das mídias, que batiam na tecla da bicicleta como instrumento de lazer, dentro do parque, e em áreas confinadas, o que deixou claro o cerne da questão: de quem era aquele espaço? Até então a maioria da infraestrutura cicloviária havia sido implementada em lugares que eram estacionamento para veículos individuais e que não estavam sujeitos à regulamentação, ou seja, eram vagas em que muitas vezes os carros passavam o dia inteiro sem oferecer nenhum benefício para a cidade. Isso gerou aquela discussão: “Eu perdi a vaga do meu carro em frente ao meu estabelecimento”, o que acabou reverberando fortemente em alguns locais. 

 

A cultura do carro atrapalha um pensamento mais coletivo?

Quando a gente começa a discutir a implementação da estrutura cicloviária e de equidade no uso do espaço público é tudo muito bonito. Mas na hora que você vai de fato dividir esses espaços e dar o direito às pessoas de utilizá-los, existe uma rejeição grande. E isso tem a ver, sim, com a cultura do carro ser muito forte no Brasil.

 

As ciclovias podem afetar a indústria automobilística de alguma maneira? 

Eu particularmente não acredito que a política cicloviária vá afetar a indústria automobilística de uma maneira significativa, até porque ela não visa eliminar os carros, e sim reduzir e racionalizar seu uso. Quando a gente fala do direito à cidade, não é a inibição do direito à utilização de carros, mas sim possibilitar que as pessoas possam escolher como se deslocar no seu cotidiano. Eu mesma tenho um carro mas entendo que a utilização dele tem que ser feita de maneira racional e compartilhada com outras pessoas.

 

O carro nem sempre é a melhor opção?

Ele nem sempre é eficiente nos modelos de cidades que nós temos. O espaço viário é finito, e portanto temos que pensar em como redistribui-lo. Isso envolve ampliar calçadas que permitam uma circulação mais adequada, manter a estrutura de corredores de ônibus, ampliar a rede de transporte coletivo e propiciar uma malha cicloviária, mantendo o espaço do carro, mas de outra maneira. 

A gente tem alguns usos do carro que são importantes, como transporte de mercadorias ou de pessoas com restrições, mas é preciso ter em mente: existem formas mais inteligentes de se deslocar.

 

Quais os maiores benefícios trazidos pela rede cicloviária?

Antes de a gente ter uma rede mínima – já que 400km está longe de ser suficiente como estrutura cicloviária de uma cidade – observamos que o perfil dos ciclistas era semelhante: jovens se arriscando no meio dos carros, normalmente homens, ou pessoas periféricas que usavam esse transporte para economizar.

A partir do momento em que começaram a ser implantadas as melhorias, começamos a ver uma maior diversidade de pessoas utilizando as bicicletas.  Mulheres, crianças, pais e mães com crianças, pessoas levando animais e até cadeirantes. É bom lembrar que muitos cadeirantes acabavam não saindo às ruas ou acessando a cidade pela dificuldade ou pelos riscos. E, com certeza, o maior ganho foi proporcionar que as pessoas possam utilizar essa estrutura com segurança.

 

Como foi ser mulher neste processo de criação e articulação dessa nova mobilidade urbana?  

Essa é uma questão emblemática e no início foi bem polêmica. Desde questionamentos do tipo: “Será que uma mulher sabe mesmo?” até reuniões com 30 pessoas, em que eu era a única mulher, e alguém soltar: “Ah, mas não pode falar aqui que tem uma mulher presente.” Nesses espaços você tem que se posicionar, manter a calma e exigir o respeito. Esse é o primeiro desafio: incluir mulheres na gestão pública. 

Eu sempre falo nas minhas palestras que quando vamos tratar de empoderamento da mulher é preciso avaliar se elas estão realmente ocupando esses locais de fala. Hoje vejo muitas mulheres se reunindo, falando e trocando com mulheres, o que já é um avanço, mas ainda não vejo mulheres falando em outros locais e principalmente sendo ouvidas por homens. Ainda é muito comum homens interrompendo mulheres no meio de um seminário e, muitas vezes, se apropriando de suas ideias.

 

Isso já aconteceu com você?

Sim, algumas vezes. Mas penso que faz parte de um processo: a gente precisa reconhecer que o machismo existe e que trazer um novo cenário é necessário. Precisamos falar de planejamento na ótica da mulher. Enquanto para os homens discutir os riscos de uma estrutura cicloviária está restrito às possibilidades de atropelamento ou de roubo de uma bicicleta, para a mulher e suas condições de vulnerabilidade nos espaços urbanos, é preciso pensar em segurança de forma mais ampla. Em São Paulo (mas não só) o índice de violência contra a mulher é muito grande, principalmente em espaços públicos, e a quantidade de estupros nesses ambientes é tão gritante que isso é sim uma questão a ser enfrentada e sobre a qual o homem muitas vezes não tem a dimensão. 

 

Vocês conseguiram avançar nessas questões?

Conseguimos trazer essa discussão à tona e conquistamos alguns avanços, mas ainda tem muito caminho pela frente. E uma das formas de conseguirmos avançar ainda mais é ter mais mulheres ocupando espaços de fala e decisão. 

 

Conta um pouco da sua pesquisa sobre bicicleta e gênero.

Minha pesquisa é focada em como as mulheres se deslocam na cidade. Trabalho com dados que mostram que se as cidades fossem desenhadas pela ótica da mulher elas seriam bem diferentes. O uso da bicicleta pelas feministas – principalmente nos EUA e na França, entre 1880 e 1900 – era uma ferramenta de empoderamento. Foi nessa época que as primeiras mulheres participaram de campeonatos que até então eram exclusivamente masculinos. Porém, o movimento feminino dessa época era elitista, branco e ainda não vinha agregado de outros valores, principalmente relacionados ao direito à cidade; era muito mais relacionado às questões de mulheres brancas de elite. Com o processo do crescimento das cidades, em decorrência das próprias guerras, acabou havendo um empobrecimento das discussões feministas, que só voltaram na década de 70.    

 

Qual o futuro da bicicleta no Brasil?

Num cenário mundial a bicicleta pode transformar cidades. No Brasil ainda estamos discutindo direitos essenciais e a bicicleta entra no meio dessa discussão, portanto, pode ser que a gente demore um pouco mais para avançar e entender essa questão, não só das bicicletas, mas dos espaços públicos de forma geral. 

 

E os cidadãos neste contexto?

A participação social é importantíssima. Quando a gente pensa no planejamento tem apenas um lado, que é toda a instrumentação técnica e teórica. Mas entender essa questão sob a ótica de quem conhece e circula nos espaços da cidade, de diferentes jeitos e com diferentes visões, é o que de fato ajuda um processo ou projeto a continuar. Sem participação social é difícil conseguir avançar. 

 

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