Sobre dias cinzentos

Quando o arrependimento fica em destaque na cabeça: os trabalhos que negou, a viagem que não fez, a casa que construiu, os beijos que não deu, cada cigarro que fumou, o cabelo que até hoje não teve coragem de descolorir

31.07.2018  |  Por: Isabel Guéron

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Sobre dias cinzentos

Havia dias em que acordava assim, cinzenta.

Os arrependimentos em destaque na cabeça. Parava de olhar para frente e mergulhava num retrovisor. Um devaneio de ré, um rewind aflitivo que a jogava cada hora numa encruzilhada repetida. E ia revivendo tudo e imaginando como seria se não tivesse sido daquele jeito. Os trabalhos que negou, a viagem que não fez, a casa que construiu, os beijos que não deu, cada cigarro que fumou, o cabelo que até hoje não teve coragem de descolorir.

Lembrou de uma revista que tinha lido dias atrás, enquanto pintava as unhas de vermelho. Uma jovem celebridade dizia que “nunca tinha se arrependido de nada na vida” e que “seu maior defeito era sua teimosia”.

Ela achou engraçado porque sempre gostou de ser teimosa; tava na lista das qualidades. Seu padrão era outro, seus defeitos seriam certamente impublicáveis numa edição de gente tão feliz.

E seguia com os pensamentos ao contrário. Feito uma montanha-russa que volta refazendo o percurso, a gente de costas, enjoando. Talvez essa fosse a explicação para a sensação de estar assim mareada. Quando será que isso passa?

Ela tinha planejado várias coisas para fazer naquela terça-feira. A casa vazia era coisa rara. O tempo só dela, ninguém pra chamar, perguntar coisas, interromper. Mas não fez nada. Porque às vezes não sabia ser ela só.

Levantou e foi lavar a louça, pra não deixar acumular. E chorou junto com a pia, isso era comum. Depois de tudo limpo ia ser mais fácil, com certeza. Às vezes é um detalhe que atrapalha. Feito ontem, que precisou levantar para fechar as portas do armário e finalmente conseguir dormir.

Sentou para escrever e reparou que o esmalte vermelho tinha ficado bastante comprometido naquela lavação de copos e panelas. Ficou até aliviada porque não estava mesmo segurando aquelas unhas bem feitas. Tinha sido uma tentativa de fora pra dentro. Algumas vezes usava esse recurso no teatro e dava certo. A personagem ia chegando num jeito de andar, numa forma de mexer nos cabelos. Depois ia tomando corpo nas relações com os outros atores. Mas era quando conseguia existir no silêncio, diante do público, que ela ficava satisfeita.

Era uma demolição e construção simultâneas. Chegava no meio caminho. Era muita coisa pra trás e milhares de possibilidades à frente. Era saudade de ser quem ela ainda não tinha sido. Tédio com euforia.

Sem querer se lembrou do dia em que foi passear no Jardim Botânico com a família. Ainda era só filha nessa época. No meio do passeio armou aquela chuva de verão. Vamos embora, a chuva vai cair! E o toró desceu sobre suas cabeças, ainda perto do lago das Vitória-Régias. As pessoas todas fugindo da água, famílias se abrigando na gruta. Até que seu pai, num rompante, puxou um coro, numa versão desbocada de Singing In The Rain. E foram, encharcados, correndo pelas alamedas aos berros: “Puta que pariu que chuva, puta que pariu que chuva, puta que pariu que chuva…”

Era bom se molhar. Ela já tinha aprendido isso no caminho.

 

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