Somos as netas das bruxas que vocês não puderam queimar

A história das bruxas desde os tempos de execução na Europa do Renascimento e por que essa imagem está sendo resgatada

13.08.2020  |  Por: Morena Cardoso

image
Somos as netas das bruxas que vocês não puderam queimar

Somos as netas das bruxas que vocês não puderam queimar.

Corpos femininos pulsantes estão ressurgindo das cinzas do tempo, exigindo a reapropriação de suas magias, reascendendo o debate a respeito de uma espiritualidade progressista que ganha cada vez mais espaço de reconhecimento no front das lutas feministas. A restauração da imagem das bruxas está sendo hoje legitimada como um enfrentamento e terreno de luta contra o patriarcado, o colonialismo, o capitalismo e o inconsciente antropo-falo-ego-logocêntrico, que guiam a construção das subjetividades na contemporaneidade.

Passando pela década de 70, enquanto em Roma mulheres em praça pública profetizavam “tremam, tremam, as bruxas estão de volta”, ou por nossas hermanas argentinas entoando recentemente o coro latino-americano “somos las nietas de las brujas que no pudisteis quemar”, ou percorrendo teóricas como Silvia Federici ou historiadoras como Anne Barstow, a imagem da bruxa está sendo resgatada. Junto a uma epistemologia feminista, esse movimento surge contra o apagamento das mulheres de suas narrativas dominantes, contra a monopolização do conhecimento pelas estruturas formais da sociedade e principalmente pela reconstituição do processo histórico de naturalização das opressões contra a mulher e determinados sujeitos sociais.

A Europa do Renascimento executou como bruxas dezenas de milhares de mulheres. Entre 50 mil e 100 mil delas foram queimadas, mortas e sistematicamente perseguidas e violentadas durante os séculos XVI e XVII, vitimas de um processo de higienização social baseado na misoginia e na austeridade das instituições centrais do período, havendo na raiz deste processo o ódio institucionalizado em relação à figura feminina.

Mas afinal, quem era essas bruxas e por que seus saberes tradicionais incomodavam tanto?

Habitando o meio rural essas mulheres eram hereges, curandeiras, esposa desobedientes, eram as mulheres que ousavam viver só. Cumpriam diferentes funções sociais: eram parteiras, advinhas, terapeutas, enfermeiras e médicas. Conheciam a respeito dos métodos contraceptivos e abortivos, utilizavam das ervas para a cura de doenças, às vezes consideradas incuráveis, inclusive em crises pandêmicas. Elas eram as mulheres Obeah, que envenenavam a comida dos senhores e incitavam os escravos à rebelião.

Mulheres estão hoje resgatando saberes tradicionais, oferecendo ritualmente o sangue menstrual à terra, voltando a ser férteis, estão uivando, soltando seus cabelos, roupas e amarras que silenciavam muito do visionário, instintivo e intuitivo

As bruxas eram as mulheres insubordinadas, que não cabiam no sistema moral vigente e que embora vivessem em completa pobreza, tinham grande prestígio e influência em suas comunidades. Seus métodos, adquiridos de maneira empírica e passados de geração em geração, eram considerados uma afronta à Igreja e à comunidade médica essencialmente masculina. A monopolização do conhecimento pelas estruturas formais da sociedade acabou por incriminar estes saberes femininos estigmatizando suas práticas enquanto demoníacas.

Teóricas afirmam que, para além do apagamento e controle desses sujeitos femininos, a inquisição é também associada à gênese do capitalismo, junto a uma série de outros fenômenos, como cercamentos (que expropriaram milhões de produtores agrários de suas terras), a pauperização massiva, a criminalização dos trabalhadores por meio de políticas de encarceramento e os três séculos de colonialismo que ocorreram durante o mesmo período histórico.

Ou seja, esse tipo de perseguição não foi um fenômeno episódico de violência contra mulheres nem uma manifestação endógena de culturas tradicionais reativas. A caça às bruxas, ao contrário, foi/é estrutural e estruturante da sociabilidade burguesa, prática e ideologia misóginas introduzidas de fora para dentro nas comunidades, justificando a acumulação primitiva aos dias atuais, os mecanismos de dissolução e controle da humanidade imanente aos corpos femininos, a legitimação da relação dominadora e agressiva com a natureza, a demonização e estigmatização dos saberes femininos e modos de produção empíricos. 

Hoje, as práticas de culto à deusa, que reabilitam o corpo feminino odiado e martirizado pelos caçadores das bruxas, representam um meio de reestabelecer os vínculos que foram desfeitos, um meio de resgate do marco histórico que evidencia formas outras de habitar este corpo. A bruxaria atual inventa uma forma de espiritualidade progressista que não se trata de celebrar e romantizar um feminino forçosamente maternal, doce e nutridor, não se trata também de reduzi-lo a uma cis-heteronormatividade – essas são as muitas vertentes liberais cooptadas, como em qualquer outro meio, que não podem ser generalizadas e nem tomadas como exemplo – mas de dar um novo sentido ao desvirtuado processo de pensar corpo e o ser-mulher. 

Muitas estão a relembrar a magia de seus corpos e ciclicidade, destituindo as hierarquias enquanto ao se encontrarem em círculos e fortalecer redes de apoio através de ritos sociais;  estão se reapropriando de sua sexualidade através de métodos de percepção de fertilidade, deixando de lado o verniz pasteurizado e os conceitos plastificados de regulação e normatização de si enquanto corpos pulsantes.

As novas bruxas estão a sair das clausuras da domesticação imposta por papéis sociais, padrões estéticos e estereótipos dominantes, enquanto experimentam novas formas auto-investigativas, autênticas e viscerais de existir em um corpo feminino. Estão a criar novas subjetividades e rompendo antigos paradigmas limitantes. Mulheres estão hoje resgatando saberes tradicionais, oferecendo ritualmente o sangue menstrual à terra, voltando a ser férteis, estão uivando, soltando seus cabelos, roupas e amarras que silenciavam muito do visionário, instintivo e intuitivo. Essas mulheres estão voltando a pisar os seus pés descalços na Terra, enquanto erguendo vozes e pulsos serrados em defesa de uma força que sustenta e opera a vida, a criar meios de fortalecimento da escuta dessas vozes ancestrais, que foram há tanto silenciadas.

Sim, nós somos as netas das bruxas que vocês não puderam queimar… Nós somos sim aquelas que estávamos esperando.

 

Morena Cardoso é terapeuta corporal, escritora, mãe, peregrina, ativista, multiartista e criadora da DanzaMedicina, uma prática experimental que visita uma dezena de países ao redor do mundo em forma de workshops, retiros e conferências

 

0 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *