Sozinha e acompanhada

Isabel Guéron escreve sobre a sensação de acolhimento provocada pela multidão de mulheres que tomou as ruas no sábado para negar 'qualquer retrocesso, qualquer preconceito'

01.10.2018  |  Por: Isabel Guéron

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Sozinha e acompanhada

De manhã desci para tomar o café de sábado na feira e minha rua já estava em polvorosa. Vários vizinhos no percurso até a barraca de tapioca, já com camisetas pintadas e adesivos colados pelo corpo. Ele não, ele nunca. Tudo bem que eu moro na rua mais democrática do bairro. Aqui tem feira, tem choro, tem carnaval. Além do carro do pão, da Kombi dos 30 ovos a dez reais, do vassoureiro e do comprador de ferro velho. No nosso microcosmo todo mundo se cumprimenta na padaria, conversa nas escadas antigas tomando uma cerveja enquanto as crianças andam de bicicleta. Ocupar a rua é coisa comum.

Na volta do café da manhã meio almoço, esbarrei com os vizinhos do 502, já rumo à Cinelândia.

– Vocês vão?

– Eu vou, respondi. Rodrigo vai ficar com as crianças.

– Quer vir com a gente?

– Vou daqui a pouco.

Agradeci e eles foram com antecedência. Subi, calcei o tênis, vesti uma calça jeans, combinei de encontrar uma amiga no metrô e saí. Na esquina mais três vizinhas que ainda esperavam uma quarta descer me convidaram para o mesmo táxi. E eu já ansiosa, a amiga me esperava na estação, preferi não esperar. Passou o 422 e eu entrei. E mais tantas mulheres juntas naquele ônibus. Parecia que todos os carros seguiam na mesma direção. Ele não, ele nunca.

Minutos antes de chegar à estação minha amiga avisa que decidiu ir direto, arranjou uma carona, a gente se encontra lá. Saltei do ônibus e mandei um recado pro meu irmão.

– Já está aí? Estou indo pegar o metrô.

– Não vem de metrô, ele respondeu. Tá lotado.

Trinta segundos depois me mandou outro recado.

– Vem de metrô sim, tá emocionante!

Entrei no buraco no Largo do Machado sozinha, o coração já aos pulos. Muitas mulheres. Muita gente de todo tipo. Parece que os vagões estão chegando lotados, me disse uma desconhecida, com intimidade. E meu coração se acelerou mais um pouco. De medo do metrô cheio; de felicidade do metrô cheio. Chegou o trem. Cheíssimo. Entrei.

Me posicionei no cantinho, perto da porta. Três senhoras já puxaram assunto.

– Ah, minha filha, eu mesma não preciso nem votar mais. Mas e meu neto, que acabou de fazer 16? Vai votar só nessa? Primeira e última? Não podia deixar de vir, não é?

– Que bom que a senhora veio, respondi enternecida.

Pensando que ela podia tudo o que quisesse a essa altura da vida, e mesmo assim estava ali, no transporte lotado. Coladinha nas amigas, indo pra rua, todas de cabelos brancos. Minto, uma acaju.

No meio de nós, um senhor desavisado me disse que estava indo para Sans Peña, perguntou se ainda era longe e por que o metrô estava tão cheio assim no sábado. Na Glória ainda encheu mais um pouco.

– Fica tranquilo, ainda falta pra chegar na Sans Peña, mas na próxima estação vai esvaziar, o senhor vai ver.

Saltei. Saltamos na Cinelândia. Uma multidão que enchia todo o comprimento da estação comemorou a chegada do nosso trem. Parecia um reencontro. Ele não, ele não, ele não! ecoava naquele subsolo do Centro da cidade. Eu, que estava sozinha, me senti abraçada pela multidão. Aqueles cartazes de cartolina escritos com pilot, as pessoas desembarcando; parecia chegada no aeroporto. Quantas amigas vieram me buscar! Subi as escadas rolantes com vontade de chorar. Três degraus acima e avistei duas conhecidas. Nos abraçamos e caminhamos juntas por alguns minutos, ainda dentro da estação lotada. Outra escada e emergimos na praça. Ufa, o céu! Respirei aliviada. Segui sozinha me embrenhando na multidão até que avistei uma pontinha de um banco de praça dando sopa e subi. De pé, feito criança, só um pouquinho. E consegui olhar tudo em volta.

E eu chorei de tão acompanhada que estava.

Era muita gente. Chegando de todas as ruas em volta. Uma multidão ocupava todos os espaços. De vez em quando um jogral e a gente ouvia a predominância das vozes femininas. Tinha homens também. E algumas crianças.

Quinze minutos e conseguimos nos encontrar. Eu e a amiga que veio de carona. E mais outra amiga. Que encontrou dezenas de alunas, lindas, tão novinhas e tão fortes. E eu vi uma senhora que subiu numa árvore para fotografar. E outras sentadinhas, acompanhadas das filhas. Encontrei uma professora querida. Depois chegou minha comadre. Passaram meninas tocando tambor, outras de perna de pau. Ele não era o grito mais forte e unia os grupos mais diversos. Era isso que a gente estava fazendo ali. Negando qualquer retrocesso, qualquer preconceito. Mostrando ao país inteiro a força das mulheres.

Voltei pra casa ao anoitecer. Cansada, aliviada, preenchida. A rapidez das informações me jogou em São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Salvador. Lisboa, Nova York, Paris. Ele não em todos os cantos do mundo. Eu não sei o que vai acontecer. Se vamos optar pelo diálogo ou pela truculência. Mas me sentir acolhida nas ruas da minha cidade me deu alguma esperança.

Nós somos muitas e estamos juntas.

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