‘Tô indo, me espera’

Como sobreviver à solteirice transpandêmica

08.02.2022  |  Por: Luciana Adão

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‘Tô indo, me espera’

Se tivesse uma máquina do tempo, voltaria à segunda-feira do carnaval de 2020: entregue à Praça da Harmonia no Rio de Janeiro entre os blocos Sambamantes e PanaméricaTransatlântico, fantasiada de jardim das delícias. Sol, chuva, brilho, xóvens e uma gente genuinamente colorida reunida. Ladeiras, becos, bocas e todo o mobiliário urbano disponível no local à disposição da vida. Saudade do carnaval, não é minha filha?

“Era uma vez um verão” cairia bem nesse prólogo – muito bem aproveitado no curto espaço-tempo, mas muito curto. Alguns affairs inesperados em processo, noites estreladas na varandinha, amanheceres no boteco Sat’s seguidos de mergulho no Arpoador e, de repente, pausa. Pandemia. Acabou. Quatorze de março de 2020 – o dia em que a Terra parou.

Passei os primeiros cinco meses da pandemia completamente isolada e sozinha, sem passar da portaria do prédio, sem ver ninguém a não ser pelo vídeo. Muito medo de contato com as pessoas, insegurança e preocupação com o que iria acontecer. Com esse cenário, todo o brilho e animação de reinício de vida se apagaram e me fechei novamente. Perdi o número de vezes quando, na melhor das intenções, amigos me recomendaram a adotar um pet e entrar para apps de relacionamento. Zero vontade, zero libido e zero disponibilidade afetiva para qualquer uma dessas iniciativas.

Em um momento de tantas angústias e incertezas, novamente estavam lá elas, as mulheres incríveis da minha rede para dizer que não estava só e que o mundo continuava existindo de muitas formas apesar do meu isolamento. A primeira pessoa que me pegou pela mão e encontrei “ao vivo” foi a Carol, amiga querida, que me deu de presente um ensaio fotográfico, após me contar o quão importante foi para ela depois de passar por um momento agudo de tristeza e separação. Criei coragem, aceitei o presente e como boa “caprica” organizei as fotos em três momentos: Linkedin, lingerie e carnaval. Algumas playlists, muitas garrafas de espumante e muitas gargalhadas depois, finalizamos o ensaio que durou um dia inteiro. Esse momento propiciou dois reencontros: com a Carol e comigo.

Por que é tão difícil sermos generosas com nós mesmas? Sob o olhar de outra pessoa enxerguei outras mulheres que habitavam meu corpo e minha alma. Interessante a libertação que um processo não planejado de autoconhecimento pode trazer. Escondidas em nossas camadas muitas vezes não nos permitimos apenas “ser”. Precisamos dos personagens para dar conta da estrutura esmagadoramente machista que nos assola. Ser mulher em plenitude de direito é a existência em radicalidade. A materialização dos nossos desejos assusta e é julgada quando manifesta de forma direta, clara e livre, como por exemplo nos apps de relacionamento.

Abrindo aqui um parêntese sobre os perfis dos apps: um dizem que é “mais refinado”, o outro com “maior variedade de pessoas” e o outro é um “X-tudo”. Muito que bem, me inscrevi nos três, nas versões pagas, porque o algoritmo – dizem – é mais generoso com você. Não consegui ser agraciada com tal generosidade, mas confesso que me diverti bastante com o estudo quase antropológico do microcosmo dos homens absolutamente padronizados apresentados ali.

No mundo encantado dos apps todos são atletas, malham, correm, surfam, cozinham, impressionante… Sexting, mentiras e vídeo-chamadas compõem o kit básico de ferramentas da solteirice transpandêmica. De Darth Vader a Leonardo Da Vinci, passando pelos clichês do “quero ver como você acorda”, “ me manda uma foto de agora” e “ o que você tá fazendo?”, aprende-se a jogar muita conversa fora, os melhores ângulos e luzes do nude a ser enviado e também a ser bastante objetiva quando se quer ou não. E, claro, quando a conversa se tornava noite feliz, about last night era a trilha.

Com a vacinação avançada, cada reencontro é um aprendizado. Minha geração é marcada por dois grandes traumas – HIV quando se era adolescente iniciando a vida sexual e agora a pandemia. Toque, beijo, abraço é assumir o risco de jogar o corpo no mundo, quase um pacto de sangue. Além da camisinha, vacina e PCR se tornaram requisitos obrigatórios para intimidade com sanidade mínima.

Após dois anos e ainda contando nessa pandemia, começamos a esperançar um novo tempo. Os sentimentos represados começam a ser extravasados de alguma forma. Nossas sequelas, medos e forma de nos relacionarmos entenderemos no caminho. A vida ao vivo, os encontros nos shows, o mergulho no pôr do sol, o chope gelado a céu aberto, o flerte na roda de samba…. “Era uma vez o verão”, novamente. Letrux em “Me espera” sintetiza o momento atual com perfeição:

“O verão tá perto, sua boca vai tá perto.
Quem quer dá sempre um jeito, bora se encontrar.
Passei quase dois anos só fazendo planos
Tô indo, me espera”

Neste verão, desejo que tenhamos saúde para experimentar a vida em quase plenitude. Que nossos corpos dancem, brilhem e desejem. Que nossas almas sejam delicadas e que possamos ser amor da cabeça aos pés. E para o resto do ano também – generosidade, leveza, saúde, cuidado, borbulhas, amores e, quem sabe, em algum momento, carnaval.

Bora, 22! Vou dançar com você! A playlist já está pronta!

 

Luciana Adão é carioca de alma e produtora cultural 

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