Toda nudez será castigada

O que há por trás da perseguição ao nu? Por que falar sobre sexo ainda é tão difícil? Conversamos com pessoas e empresas que vivem com a bandeira da liberdade responsável numa mão e o escudo anti-moralista na outra

01.02.2018  |  Por: Lia Bock

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Toda nudez será castigada

Colagens: Carmen Cerqueira

No dia 4 de setembro de 2017, Hysteria ainda era uma plataforma em construção, e a única coisa em funcionamento então era nossa newsletter, Hysteria das Galáxias. Passamos o fim de semana selecionando os links, redigindo e editando os textos, animadas com o envio da terceira edição. Na manhã da terça-feira, como sempre, disparamos nosso xodó por e-mail. No topo da newsletter, o texto de abertura dizia: “Pode chamar de erótico, altporn, pornô feminino ou só pornô mesmo. Nada ofende ou muda o que está na tela: sexo gostoso para todos os participantes. Acima, cenas de Amores Líquidos, primeiro curta de Hysteria, dirigido por Carol Albuquerque e encenado por Fernanda Lensky. Em breve em uma internet perto de você.” O Gif que acompanhava essas palavras trazia imagens do filme com duas mulheres se pegando. Forte. Artístico.

No dia 5 de setembro de 2017, recebemos um e-mail frio e automático da MailChimp, a plataforma de envio de e-mails de marketing que havíamos escolhido para nossa newsletter. A mensagem avisava que tínhamos ferido os termos de uso da plataforma e que, por isso, estaríamos proibidos de usar a ferramenta. Depois de alguns dias e muito esforço conseguimos uma resposta menos genérica, em que a empresa dizia lamentar muito, mas reafirmava o banimento: a plataforma não aceita violência, pedofilia ou pornografia. Sim, Hysteria estava sendo comparada a pedófilos e neonazistas, sem direito de defesa ou explicação. Trocamos de ferramenta, mas, no dia seguinte, algo havia mudado na sala que ocupamos na Conspiração Filmes de São Paulo. A realidade acabara de nos invadir.

Ali, percebemos que poderíamos até continuar produzindo filmes eróticos, mas não seria possível sair postando os conteúdos por aí. Hoje, nossa postura soa absolutamente ingênua, mas como é linda a ingenuidade. Este nosso pequeno entrevero é a realidade de todos os que trabalham não apenas com o pornô, mas também com o nu. Artistas que usam o corpo e museus que abrem suas portas para esses artistas, produtoras de filmes “adultos” que remuneram de forma justa e respeitam as mulheres, redes sociais de sexo que pregam a liberdade, o consentimento e a educação sexual, revistas de arte erótica feministas: todos são, dia após dia, comparados a criminosos. São banidos, expulsos, condenados, perseguidos. Seus crimes? Ofender (e, por que não dizer?, combater) uma moral criada por poucos e há muito tempo.

“Quando comecei o MakeLoveNotPorn.tv  (em 2012, como uma espécie de YouTube em que se pode alugar ou postar vídeos de sexo caseiro) não me dei conta de que enfrentaria uma batalha por dia. Cada pedacinho da infraestrutura do negócio que outras startups resolvem com facilidade era um desafio pra nós. Tudo porque em letras miúdas lia-se ‘proibido conteúdo adulto’”, conta Cindy Gallop. A rede social de sexo que trabalha como um hub de distribuição de filmes caseiros de sexo real (remunerando de forma justa os make-love-not-porn-stars, como eles chamam) demorou anos para conseguir abrir uma conta no banco e meses para implementar o sistema de pagamento dos vídeos, tudo por causa das mesmas letras miúdas. “Tivemos que construir nossa própria plataforma de streaming porque nenhuma das existentes permitia sexo”, completa Cindy.

No Brasil, a Sexlog, que já tem 10 anos, passou pelos mesmos problemas. “Hoje, temos uma equipe de tecnologia de ponta, treinada aqui dentro para desenvolver todas as ferramentas de que precisamos. Já cansamos de não conseguir as coisas por trabalharmos com sexo”, conta Mayumi Sato, diretora da maior rede social de sexo do país. Os problemas vão desde conseguir um servidor de e-mail, até um antifraude, passando, claro, pela dificuldade de anunciar o serviço da empresa, que funciona como um Facebook pago em que as pessoas podem compartilhar sexo.


“Já fomos contatados para anunciar em alguns portais, mas quando a coisa caminha dentro da empresa acaba batendo em alguém que sente sua moral ferida, e a conversa, começada por eles, diga-se, é finalizada abruptamente”, conta. A Sexlog não está sozinha por aqui. A
revista Nin, que trabalha com arte erótica, a X-Plastic, que produz filmes pornôs, e o Topless in Rio, que briga pelos mamilos femininos livres, são outras empresas brasileiras que carregam a bandeira da liberdade responsável numa mão e o escudo anti-moralista na outra.

“É doido pensar que tem um monte de gente por aí roubando vídeos e espalhando por onde bem entende. Hoje, a regulamentação de empresas como Google e Facebook só atinge quem faz tudo certinho. É um contrassenso”, pondera May Medeiros, diretora de projeto da X-Plastic. “Nós já tivemos problema com o Vimeo numa conta paga e só para uso interno da produtora, já tivemos problema até com operadora de cartão de crédito. Veja: nós produzimos um conteúdo sem nenhum crime ou bestialidade, a pessoa quer comprar este produto, mas o cartão não deixa. É uma censura ditatorial moral disfarçada de controle de segurança”, avalia.

Chiara Teffé, pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS), que estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo, corrobora o pensamento de May: “A pornografia comercial só adquire quem quer, não é algo que está se distribuindo na rua, você tem que comprar, é um produto oferecido a pessoas maiores de idade. As regras discriminam e são baseadas em critérios conservadores.”

Mamilos do Facebook

Um dos grandes desserviços neste ramo é a proibição de mamilos femininos pelo Facebook. No texto Você é o produto – Mark Zuckerberg e a colonização das redes pelo Facebook, escrito para a revista Piauí, o ensaísta, escritor e jornalista britânico John Lanchester pondera a discrepância do tratamento dado pela rede social aos conteúdos: “O Facebook se esforça ao máximo para evitar qualquer responsabilidade pelo conteúdo do seu site — exceto no que diz respeito ao conteúdo sexual, questão em que demonstra um rigor extremo. Mamilos femininos são banidos. A escala de prioridades é bizarra, e só faz sentido no contexto americano, em que a mais ligeira sugestão de sexualidade explícita é logo tingida de impureza moral. Já mentiras e mera propaganda podem circular à vontade”, diz ele, referindo-se especificamente às fake news vinculadas sobretudo durante a campanha presidencial americana.


Não é à toa que muitas das empresas que trabalham com conteúdo adulto não mantêm perfil ativo da rede de Zuckerberg. “Passamos longos períodos com nossas contas pessoais bloqueadas no Facebook por causa da Nin. Algumas vezes era censura automática, seguindo as normas (questionáveis) da rede. Outras, fomos denunciadas por imagens ‘impróprias’, como uma foto da Maria Bethânia com os seios de fora, o que nos tirou de cena por mais de um mês. Depois disso, resolvemos parar de usar esse meio. Não queremos postar imagens com tarjas, porque achamos surreal, e também não queremos expor nossas vidas pessoais à essa onda conservadora absurda”, justificam Letícia Gicovate e Alice Galeffi, editoras da revista Nin, que também publica textos qiunzenais em Hysteria.

Fabro Steibel, diretor-executivo do ITS, explica a incongruência do Facebook: “Tudo indica que a rede social aplica critérios diferentes para homens e mulheres, o que podemos chamar de sexismo. O ideal seria termos um debate aberto sobre isso. Mas é importante lembrar que o que se censura não é o mamilo feminino em si, o que se censura é o erótico. E o que define o mamilo feminino como erótico?” Esta é a pergunta de um milhão de dólares (ou uma delas).

E para respondê-la é preciso muito contexto histórico: “A sexualização da nudez de forma geral — mas em especial da nudez feminina — é uma questão importante. Somos educados e levados à compreensão de que uma mulher de seios à mostra tem intenção sexual, ou de que a visão desse seio vai inevitavelmente resultar na excitação. É compulsório, e isso tem consequências muito graves para as mulheres”, diz Erika Cardoso, doutoranda em História da Pornografia.

E de onde vem essa moral? Essa perseguição ao corpo nu e ao sexo? Pode parecer que ela sempre esteve entre nós, mas muitos estudiosos já deram conta de quando, onde e por que ela foi produzida. Depois de uma pesquisa de mais de 30 anos, a historiadora italiana Silvia Federici aponta, por exemplo, o exato momento em que os banhos públicos e os prazeres do corpo passaram a ser perseguidos. No livro Calibã e a bruxa (ed. Elefante), ela conta que no século XVII a burguesia emergente tentou com afinco moldar as classes sociais de acordo com as necessidades do desenvolvimento capitalista.

“Na tentativa de formar um novo tipo de indivíduo, a burguesia estabeleceu uma batalha contra o corpo, que se converteu em uma marca histórica. De acordo com Max Weber (um dos criadores da sociologia), a reforma do corpo está no coração da ética burguesa porque o capitalismo faz da aquisição ‘o objeto final da vida’, em vez de tratá-la como meio para satisfazer suas necessidades; para tanto, necessita que percamos o direito a qualquer forma espontânea de desfrutar a vida”, e os prazeres do sexo está entre elas. Segundo Silvia, o processo para produzir uma mão de obra disciplinada foi longo e penoso.

Os cidadãos não queriam ser submetidos às novas regras, e o resultado foi um verdadeiro regime de terror que punia e matava os desobedientes. “Fecharam-se tabernas e banhos públicos. Estabeleceram-se castigos para a nudez e também para outras formas ‘improdutivas’ de sexualidade e sociabilidade.” O sexo e a diversão atrapalhavam a lógica capitalista burguesa e, assim, precisavam ser tirados do caminho.

Corta para 2017. Lembremos então da tentativa de classificar como pedofilia a interação de uma criança com a performance do coreógrafo Wagner Schwartz, no MAM de São Paulo, e da tentativa de impedir uma exposição sobre a história da sexualidade na arte, no MASP. Perderam-se os motivos, é claro, mas a lógica segue a mesma da descrita por Silvia: perseguição ao corpo e criminalização do sexo em nome de uma moral moldada por critérios conservadores de apenas uma parte da população. Em nome de quê?, nos perguntamos. Por que não podemos tratar o sexo como uma parte de nossas vidas? Por que não podemos tratar o corpo com mais naturalidade?


Durante dois meses a reportagem de Hysteria tentou contato com Facebook, Instagram, Vimeo, Google, MailChimp e Paypal (entre outros), conhecidos por banir e dificultar a vida de quem trabalha com nu e pornô. O questionamento era simples: queremos entender os motivos dos termos de uso que proíbem a nudez e que colocam o sexo no mesmo lugar que pedofilia e crime. Só com o Google foram seis e-mails trocados; com o Vimeo, mais seis. Com o Facebook, foram mais de cinco telefonemas, além dos e-mails. Alguns mandaram o texto completo de seus termos — que já conhecíamos e que estávamos justamente questionando — e negaram entrevista. Outros prometerem falar, mas simplesmente deixaram de retornar nossos contatos. E a pergunta segue pertinente: por que tanta dificuldade em falar sobre o assunto? Em off, uma fonte que trabalha no Facebook justificou que as regras são mundiais e que por isso é preciso nivelar as normas segundo os critérios de países mais conservadores. Imagina se essa moda pega? É o vulgo nivelar por baixo.

Não usem as crianças como desculpa

Para Cindy Gallop, a publicitária inglesa que criou o MakeLoveNotPorn.tv e vem fazendo uma cruzada mundial contra o modus operandi com que lidamos com sexo, os problemas gerados pela perseguição ao nu e ao prazer sexual são graves e com consequências sociais drásticas. Um estudo da Bitdefender mostrou que as crianças começam a assistir pornografia online aos 6 anos. Isso acontece simplesmente porque é inevitável, não importa o quão restritivo você seja com os gadgets.

“Um dia, no aparelho de um amigo, elas digitam no Google uma palavra nova. Um ou dois cliques depois, estão em uma página que nunca esperavam encontrar. E, assim, muito antes de começarem suas vidas românticas e sexuais, as crianças acessam o pornô hardcore vastamente disponível na rede”, conta Cindy. E qual o efeito disso? Não é difícil imaginar: gerações inteiras sexualmente educadas por pornô da mais baixa qualidade, muitas vezes violento e impróprio até para adultos. É por isso que Cindy defende em suas palestras ao redor do globo: “A resposta não está em proibir ou restringir conteúdo adulto ‘por causa das crianças’. Isso já vimos que não está funcionando. Precisamos, sim, abrir a conversa sobre sexo de um jeito educativo. E isso começa em casa”, diz, com firmeza.


Cindy não é a única que aponta a falta de abertura para falar de sexo como raiz de problemas como a cultura do estupro, por exemplo. Muitos pensadores brasileiros defendem a implementação de educação sexual e de gênero nas escolas, mas a resistência de políticos ligados a igrejas é grande. Assim, as iniciativas públicas de lidar com o assunto naufragam no conservadorismo cego que, na tentativa de moralizar, acaba contribuindo para o aumento da violência e de tudo o que vem na esteira da desinformação.

“Basta olharmos os dados que apontam os índices alarmantes de abuso sexual de menores no Brasil, que também é o 4° no ranking mundial de casamento infantil, para nos darmos conta de que esse é um problema incrustado na sociedade. A questão é que para algumas pessoas a pornografia é responsável pela alta incidência desse crime, pois acredita-se que ela influencia, naturaliza e condiciona o abuso. Eu não acho que a pornografia seja a responsável por isso. Até porque existem diversos tipos de pornografia. O que me pega não é a existência de pornôs com referência a signos infanto-juvenis, como pirulitos e saias de prega, por exemplo, mas, sim, que exista uma enorme demanda por esse tipo de filme. Essa me parece a grande questão do problema”, pondera Erika Cardoso.

É com a ponderação de Erika que finalizamos esta reportagem: “Acho a contradição entre a fartura de discursos contrários à pornografia e o seu consumo massivo o melhor exemplo dos problemas que temos com o sexo e a sexualidade de uma maneira geral.” Se não vemos eficácia no modo como tratamos de tais problemas, não seria a hora de repensarmos as regras, os termos de uso e toda a forma como lidamos com a sexualidade?

 

Esta reportagem contou com a colaboração de Tainá Nogueira. 

 

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