Travesti não se traduz
Como o movimento trans transformou o termo, que nasceu de forma pejorativa durante a ditadura, em um símbolo de uma luta política, revolucionária e exclusivamente latino-americana
08.04.2022 | Por: Mariana Caldas
Travesti é uma força que não se traduz. Porque não é só uma palavra, mas um movimento, uma identidade, um símbolo de resistência, de amor, de força e de luta política. “O termo travesti não é apenas um termo, ele carrega uma simbologia, uma representação, um papel social, um lugar social específico no Brasil”, explica a transativista, pedagoga, assessora parlamentar de Erica Malunguinho e pesquisadora em teoria curricular com ênfase em pedagogias anti-racistas e descoloniais, Maria Clara Araújo, em conversa com a cantora Linn Da Quebrada, que resultou na exposição online “‘Travesti’ não se traduz!”. “Então, se traduzirmos, receio que toda a historicidade do movimento travesti no Brasil, inclusive de ter reclamado um termo que foi usado de forma pejorativa durante anos e ressignificado, traduzir o termo nos faria perder um pouco da noção de nossa posição no mundo”.
O termo travesti nasceu dentro das ditaduras da América Latina como um jeito de designar, de forma absolutamente pejorativa, as pessoas que não se enquadravam dentro do padrão cisnormativo. Hoje o movimento trans latino-americano se empodera da sua própria história ressignificando a palavra travesti como um símbolo de força, de unicidade e de revolução. A grande virada política foi a Operação Tarântula, criada pela polícia em 1987, com o intuito de prender as travestis que estavam trabalhando nas ruas de São Paulo. Em pouco menos de duas semanas mais de 300 foram detidas e violentadas. E apesar de ter sido suspensa pouco tempo depois, as travestis começaram a ser misteriosamente assassinadas a tiros pela cidade.
Segundo a historiadora, comunicadora, escritora Giovanna Heliodoro, “É importante a gente se dar conta de que a identidade travesti é uma identidade latino-americana. Não existe travesti em outro lugar do mundo. Foi construído um imaginário de que travestis são violentas, que travestis machucam, que travestis andam com navalhas. A travesti durante a década de 1970 e 1980 foi extremamente perseguida, assim como hoje também é, mas existiam operações como a Operação Tarântula, que é um marco na história do movimento trans, que é quando a polícia resolve agir com um plano muito bem arquitetado para poder caçar as travestis, pra poder eliminar elas das ruas. É nesse momento, como uma forma de resistência que elas criam armaduras, nós criamos armaduras, as que me antecederam criam armaduras para poder resistir a esse ambiente de opressão”.
“A travesti é uma identidade de gênero feminino, latino-americana (não vamos encontrar a palavra travesti em outras línguas, não tem tradução). E não tem masculino de travesti, é a travesti e ponto. E essa pessoa nem sempre se identifica de uma forma binária, ela não é homem e não necessariamente é mulher. Ela é a travesti”, explica a criadora de conteúdo Adriana Maria. “Uma mulher pode ser trans e travesti e pode ser só travesti, que é quando ela não se identifica com a forma binária de mulher como a gente conhece, mas ainda é uma figura feminina, portanto de pronome feminino ela/dela”.
“Então entender a diferença da travesti para a transsexual passa por um processo também de entender a história dessa identidade aqui no Brasil e na América Latina, entender como ela foi marginalizada ao ponto de ninguém mais querer falar a palavra travesti e achar que é um xingamento. Quando me chamam de travesti pra mim é um elogio”, afirma Giovanna Heliodoro.
Como maravilhosamente conclui Maria Clara Araújo em seu áudio já histórico para Linn Da Quebrada: “Assim, para mim vale muito mais a pena nos apresentarmos ao mundo sem tradução. Porque muitas vezes precisamos nos traduzir, sabe? Para o homem branco nos entender. Temos particularidades próprias e talvez esse processo de tradução nos faça perdê-las. Seríamos, então, vistos de um ponto de vista geral, que tende a ser uma visão que colhe, exclui, silencia, esconde coisas específicas que só vivemos justamente por sermos travestis brasileiras.” Viva as travestis latino-americanas e sua expressão autêntica, verdadeira e revolucionária!
Mariana Caldas, produtora de conteúdo da Hysteria, é diretora, fotógrafa e jornalista. Seu trabalho autoral investiga e revela a natureza selvagem que vem de dentro
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