Uma surfista na multidão
A história de Janaína Pedroso mostra que ser uma mulher que pega onda é ao mesmo tempo persistência e resistência
12.02.2019 | Por: Janaina Pedroso
Eu seria capaz de escrever páginas e páginas sobre ser mulher e surfista. Sobre como é foda ter que lidar com alguns tipos do outside (zona onde as ondas quebram). Não faltam histórias para encher esta página como a da Tita Tavares, uma das melhores surfistas do Brasil, que tem seu feito ignorado e já passou fome.
Conheço bem as “dores” do esporte. E estou sempre de olho em quem por ignorância, medo ou maldade não é capaz de valorizar ou respeitar uma mulher na água.
Mas hoje eu vou contar a minha história. Mais uma história de como o mundo do surfe rechaça as mulheres.
O começo de tudo
Pego onda desde os 16 anos, mas tive meu primeiro contato com o mar antes disso. Não me lembro ao certo quando as férias de verão da família começaram a ser no Guarujá, mas passei a amar tudo aquilo. E foi lá que peguei meu primeiro jacaré, tomei meu primeiro caldo e descobri um amor imenso pelo mar.
Do isopor até o bodyboard foram alguns anos. Deixei a tranquilidade de Garça, cidade onde cresci, para, aos 11 anos, me mudar para São Paulo, que logo de cara me pareceu brutal e monocromática. A vida assumiu um outro ritmo.
Depois de cinco longos anos longe do mar, decidi que era hora de voltar. Comprei meu primeiro bodyboard de verdade, pés de pato, o kit completo. Também investi em fitas VHS que mostravam ondas enormes no Havaí, com a performance de atletas como o hexacampeão Guilherme Tâmega, além de uma turma completamente insana de Itacoatiara, em Niterói.
Por um bom tempo assisti a esses filmes todos os dias. Na minha cabeça, quanto mais eu assistisse àquilo, mais fácil seria surfar daquele jeito. Só que a realidade é outra, e pegar onda tem uma regra principal e imprescindível: para aprender a surfar é preciso surfar. Pode parecer redundante e simplista, mas é isso, não tem outro jeito. Quanto mais tempo na água, furando onda, remando, se equilibrando, melhor.
Eu amava estar na água, mas algo havia de errado entre mim e o bodyboard. A começar pela falta de hidrodinâmica daquela prancha, sem falar dos pés de pato que me incomodavam também, causando cãibras frequentes nas panturrilhas. Ao mesmo tempo em que me divertia, conseguia notar que não tinha o menor talento. Em dois anos nunca completei um rolo (manobra que você gira no ar tomando o impulso na crista da onda), mal dava uns 360º. Zero emoção. Meu desafio, então, passou a ser o tamanho das ondas e o bodyboard só tinha graça quando o mar passava do metro e meio e eu pegava as maiores da série. Muitas vezes dropava quicando literalmente na onda e rezando pra não sofrer uma lesão na coluna ou no pescoço, típicas de atletas que praticam o esporte.
Foi durante um verão que resolvi abandonar o morey. Uma temporada de 30 dias sem onda e muito sol, em que tive a chance de virar finalmente uma surfista. Confesso que quando eu estava no outside com meu morey e via uma mulher de prancha pensava: “Poxa, meu lugar é ali.” Depois de um tempo, comecei a me aventurar com meus primos na água, de prancha.
Desde a primeira queda com uma 7’4 gunzeira, que roubei do meu tio para aquela ocasião específica, soube que era do surfe de pé que eu gostava. O desafio me motivava ao mesmo tempo em que eu já tinha certa noção de posicionamento e remada, o que ajudou muito no começo. Não demorou pra pegar minha primeira onda e sentir todas as sensações que rondam o exato momento em que, de alguma forma, você é parte daquele universo, daquele mar, daquela energia. E eu queria mais e mais, mal dormia de ansiedade, queria surfar de novo, queria acordar antes de o sol nascer, queria ser a primeira a entrar na água.
Do luxo ao lixo – e a possibilidade de parar de surfar
Já tive algumas crises com o esporte que me fizeram ficar longe da água e, como numa relação amorosa, o tesão tinha sumido. Já presenciei coisas de que não gostei, já me senti ameaçada, já senti raiva do surfe, quer dizer, dos surfistas. Porque se tem uma coisa de errado no surfe não é com a modalidade em si, mas com as pessoas que a praticam.
É engraçado, porque ao mesmo tempo em que fui muito incentivada por alguns homens, entre eles namorados e amigos, por outro lado senti na pele o preconceito em relação a ser uma mulher surfista.
A impressão que se tem é que uma mulher em cima de uma prancha no outside é capaz de incomodar ou acender qualquer viés machista que possa habitar dentro de um ser-surfista-homem. Uma mulher quebrando nas ondas, dropando as da série, remando de igual pra igual com os caras realmente incomoda.
Recentemente, vivi meu pior momento na água, um bate-boca fenomenal. Saí do controle, enlouqueci e, por minutos, eu preferia morrer ali se fosse preciso, mas não queria ter que baixar minha cabeça para um tipo como aquele. Era um dia clássico, as ondas estavam perfeitas e grandes, e nada me tira da cabeça que o que o incomodou foi me ver tão à vontade no pico. “Sai da água! Sai da água! Vou te arrebentar, vou te atropelar”, ele vociferava. E eu gritava mais alto: “Passa em cima então, seu machista, passa em cima de mim!”
Foi horrível. Me fiz de durona, continuei na água, mas por dentro estava arrasada. Começaram a remar na minha direção surfistas para me apoiar, afinal a única coisa que eu havia feito para ser tratada daquela maneira era estar ali. Foi bonito receber apoio, mas peguei mais duas ondas e saí. Confesso que naquele dia chorei e me lembrei de quando recebi a primeira ofensa simplesmente por estar surfando. Fazia muitos anos que algo do tipo não acontecia e o fato trouxe à tona lembranças amargas.
O surfe é sexy
Nesse ambiente, muitas vezes hostil, há disputa de sobra tanto na água, por ondas, quanto na areia, por atenção. Em meio ao show de lordoses e dorsos sarados, encontrei minha calma no mar. A areia nunca foi meu lugar preferido.
O surfe é sexy. É incontestável afirmar que a praia é e sempre será um ambiente bastante propício para servir de cenário para histórias de amor ou, no mínimo, de paixões acaloradas.
Lembro ter achado graça na primeira vez que me dei conta de que naquele ambiente eu levava vantagem, já que por muitas e muitas vezes era a única mulher na água. Não que importasse muito, porque assim como os caras eu estava mais interessada em surfar mesmo.
Finalmente em casa
Depois de anos frequentando o Sertão de Camburi, no Litoral Norte paulista, passei a frequentar Ubatuba e as coisas ficaram muito claras na minha cabeça. Eu era surfista, amava o surfe e queria viver dele. Afinal, quando surfo sinto ter atingido uma espécie de nirvana, paraíso, sem ter morrido. É quando me sinto viva, quando o medo se transforma em coragem e a persistência em prazer.
A praia de Itamambuca, especialmente, combinava com meu sonho de lugar pra viver. Perto do mato, cercada de uma costa surreal de montanhas, ruas sem asfalto, muros baixos, pássaros tão coloridos que parecem ter saído de um livro infantil. Era esse o meu lugar.
Hoje, aos 35 anos, eu moro na praia, trabalho com jornalismo esportivo, tenho um site sobre surfe e passo os dias entre textos e ondas. Sim, eu sou surfista.
Janaína Pedroso é jornalista, surfista, amante do mar, filha de Iemanjá e criadora do site Origem Surfe
2 Comentários
2 respostas para “Uma surfista na multidão”
Tamara sua linda <3
M A R A V I L H O S A ! !