Uma vez na vida não fui tratada como negra

Bibi sempre me tratou como uma pessoa. Que louco ser uma pessoa o tempo todo

21.05.2018  |  Por: Linda Marxs

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Uma vez na vida não fui tratada como negra

Ela era uma colega de trabalho como tantas outras, mas havia algo muito diferente nela: Bibi não me tratava como negra. E digo negra, não preta, NEGRA, esse lugar social de uma mulher preta onde lhe cabe ser tratada de uma forma específica e interagir com pessoas não-negras de uma certa maneira.

Humanos interagem em diversos níveis sociais, de gênero e de posição hierárquica. Existe um campo léxico, uma gama de assuntos específicos que se usa quando que se fala com cada grupo de pessoa. É certo dizer que brancos falam de uma determinada forma que Branquismo é como poderia ser chamado em Teoria da Comunicação o comportamento e a linguagem usada pelos brancos ao se comunicarem com pessoas não-brancas.

Se a forma como você fala com seu melhor amigo é diferente de como fala com sua namorada ou companheiro, por que você falaria com um preto da mesma forma como fala com um branco?

Sim, Bibi era branca, mas diferente de todas as pessoas brancas que eu tinha conhecido até ali, ela não me tratava como negra. De alguma maneira parecia que ela não sabia ou até mesmo que não via que eu era negra. Era tão diferente que me intrigou profundamente. Pela primeira vez senti algo que nunca havia sentido: eu era apenas uma pessoa.

Uma pessoa, tipo uma mulher, uma mina, uma colega com que ela conversava sobre os mais diversos assuntos sem usar palavras ou me relacionar com ideias referentes a ser preta e ela branca. Sei que parece que nem todas as relações sociais são racializadas, mas na verdade são. De forma sutil (ou nem tanto) e com muitas camadas simbólicas, todas as relações entre brancos e pretos são sempre racializadas em algum nível e aqui no Brasil o racismo recebe contornos de afeto e desprezo. Menos com a Bibi.

São exemplos simples, e, vejam, nem sempre mal exemplos. Não digo que ser tratada como negra é de todo ruim sempre, mas é assim: quando eu mudo meu cabelo sempre escuto comentários específicos, brancos tocam meu corpo sem minha permissão, relacionam meu cabelo a sujeira, olham como se fosse algo exótico e se comportam de maneira inconveniente. Já a Bibi dizia apenas: “Você está linda”, ou não dizia nada. Era estranho, nunca tinha acontecido isso antes. Brancos relacionam conteúdos disfóricos ao negro de forma muito naturalizada através de expressões e construções narrativas. Por que com Bibi era diferente?

Comecei a observar mais de perto e tentar entender qual era a diferença entre ser uma mulher e ser uma mulher negra. A Bibi, de forma espontânea e totalmente orgânica, nunca me deu um apelido (por mais carinhoso que fosse) relacionado à minha cor. Ela nunca me não perguntava o que eu achava de todo caso de racismo que mexia com as redes sociais, ela não me contava que no passado tinha sido racista ou que sua avó era preta. Ela não me perguntou também se eu iria assistir a Pantera Negra e nem em qual minha escola de samba preferida. Ela nunca disse que não era racista, o que implica dizer que se por um lado ela não me  tratava como negra, ela também não falava como branca, o que torna o caso ainda mais complexo.

Um dia alguém contou pra ela que existiam pessoas negras

Bibi veio até minha mesa como costumava fazer no final da tarde para falar das pequenas anedotas cotidianas. Eu estava olhando para a tela do computador e pra ser sincera, não estava prestando muita atenção, quando eu ouvi ela dizer que existiam pessoas negras. O mundo parou naquele instante. O que havia acontecido? Como assim existem pessoas negras? Bibi tinha se tornado branca?

Pedi para ela repetir e ela disse algo como: “A fulana me disse que existem as pessoas brancas e as pessoas negras”, e logo mudou de assunto com uma naturalidade que me deixou pasma. Foi tão rápido que eu não tive tempo de perguntar qual era o assunto ou por que fulana tinha falado isso. A mudança tão drástica da narrativa e a aparente inutilidade daquela informação para ela me trouxe outro dilema: será que ela não tinha percebido que eu era as pessoas negras? Será que ela sabia que ela era as pessoas brancas? Pra ela eu era negra ou não era branca?

Aparentemente, mesmo sabendo agora que existiam as “pessoas negras”, ela não passou a me chamar de nega e nem dizer que amava samba para me agradar. Também não me deixou constrangida com seus comentários e histórias de racismo cotidiano. Nem uma única piadinha ou jogo de linguagem. Ela não chamou ninguém de negão, não ridicularizou nenhuma pessoa preta “de brincadeira” ou disse que a minha cor era linda. Bibi não falava como branca, e isso faz toda a diferença.

Eu e Bibi éramos apenas duas moças, colegas e amigas de trabalho. Nada mais. Com ela, eu era apenas uma pessoa e isso era bom.

Por alguma razão sinto que deveria dizer que Bibi é portadora de Síndrome de Down e foi minha colega de trabalho por alguns meses. Não sei por que sinto que é necessário falar isso ou porque quero que vocês saibam. Mas eu quis dizer. Vou investigar.

 

Linda Marxs é editora da página Samba Abstrato e do blog Efigenias

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