Uma vingadora para as mulheres abusadas

Conheça a história de Jovita Alves Feitosa, a cearense que em 1864 enfrentou as regras do patriarcado para vingar as vítimas de estupro na Guerra do Paraguai

12.07.2019  |  Por: Nataly Cabanas

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Uma vingadora para as mulheres abusadas

Foi no tempo do imperador. Faltava ainda mais de um século para a palavra sororidade fazer parte do nosso dicionário. Mas em 1864 Jovita Alves Feitosa, 17 anos, sertaneja do interior do Ceará, já compreendia exatamente o seu significado. Ao ouvir o chamado de recrutamento nacional para lutar na Guerra do Paraguai, ela veste-se de homem e se alista. Quando descoberta, presta depoimento ao chefe da polícia, que quer saber o porquê de ela querer tanto ir à guerra, ao que Jovita lhe responde: “Para vingar as mulheres abusadas pelos paraguaios no Mato Grosso. Para matar paraguaios.”  

Primeiro lançamento da Chão Editora, o livro Jovita Alves Feitosa – Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte foi escrito pelo historiador e membro da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho e ressuscita dos escombros da nossa desmemória nacional a história da heroína trágica que se preparou para lutar no front desafiando o machismo e as convenções da época. É um “esboço de biografia” que reconstrói os passos da breve e intensa vida de Antônia Alves Feitosa. Ele tenta discriminar mitos e fatos, ao mesmo tempo em que deixa claro que é na confusão entre os dois que se constrói a complexidade da personagem.

Há tempos Jovita pedia mais atenção do autor que a conheceu estudando a Guerra do Paraguai. Mas só quando a Editora Chão lhe propôs falar “dos de baixo” é que ele se animou a enfrentá-la. Tentar decifrar seus desejos e suas lutas não foi fácil. Semi-analfabeta, há pouquíssimos registros confiáveis de declarações suas. 

Mas vamos aos fatos: em 1864, o Paraguai invadiu a província do Mato Grosso, declarando guerra ao Brasil. O embate com o país vizinho não começou com um uso de força tão desigual como em seu desfecho. O exército brasileiro, que possuía um terço do ultra-militarizado Paraguai de Solano López, fez uma inédita campanha nacional, pedindo voluntários – os chamados Voluntários da Pátria.

O pedido chegou ao longínquo povoado de Jaicós, no interior do Piauí, onde Jovita vivia com um tio. Órfã de mãe, tinha se mudado há pouco para a casa do parente, deixando os irmãos e o pai no vilarejo onde nasceu, Inhamuns, no Ceará. Pouco se sabe sobre a vida da “jovem de traços indígenas e africanos e de olhar tristonho mas penetrante.” Sabe-se que tinha um irmão mais velho que partira para o Sul em direção à guerra, que lia e escrevia “mas tudo mal”, e que apesar de saber atirar não sabia como carregar uma arma.

Desejando juntar-se aos Voluntários da Pátria e sabendo que no exército não se admitiam mulheres, adotou o traje masculino, tosou os cabelos e foi aceita no batalhão. Na primeira parte de sua trajetória, percorreu os 379 quilômetros que ligavam Jaicós a Teresina com um grupo de voluntários. Chegando na capital, uma desconhecida observa intrigada seus furos nas orelhas, e apalpando-lhe os seios contidos em uma faixa, nossa a Diadorim de Inhamuns é desmascarada. Mesmo conhecendo sua verdadeira identidade, o governador da província a aceita como segundo sargento.

Sem saída ou aliados, experimentou o alto preço de ter se tornado uma mulher pública

A partir dali Jovita viveria seus 37 dias de glória. A história da jovem que estava indo para a guerra logo se espalhou, fazendo dela uma celebridade, uma espécie de Joana D’Arc nacional. Pelas capitais onde passava era homenageada com peças de teatro, banquetes, poemas e presentes. A máquina de propaganda do Estado logo percebeu que Jovita era publicidade espontânea e servia para jogar lenha na fogueira do patriotismo: se até uma mulher estava indo à guerra, o que você brasileiro ainda fazia em casa? Mas tão logo chega à capital, o balde d’água fria é lançado: a Secretaria da Guerra não a aceitou como combatente. Se quisesse se tornar enfermeira, “para prestar serviços compatíveis à natureza de seu sexo”, era bem-vinda; quanto à pólvora, era melhor manter distância. Negando a irresistível oferta, ela responde que “coisas de mulher ela poderia fazer na sua terra, não precisava ir até o Paraguai.”

Frustrada, tentou ser a boa filha que à casa torna, mas nem o pai ou o tio a aceitaram. Tampouco poderia ficar em Teresina sem proteção, pois “saíra como heroína e voltava humilhada pelo fracasso de seus planos. Sem saída ou aliados, experimentou o alto preço de ter se tornado uma mulher pública; a rejeição era o castigo que deveria purgar por ter ousado desafiar os limites domésticos. Sozinha, Jovita parte novamente para o Rio – talvez tivesse imaginado que na cidade grande seria apenas mais uma, com um mínimo de liberdade. Mas seu nome logo volta a aparecer nos jornais. De Joana D’Arc auspiciosa que frequentava a corte agora ela tinha passado ao bas-fond do Rio e fazia parte das “elegantes do mundo equívoco” – eufemismo criativo para prostituição.

A próxima notícia que se tem de Jovita lança seu nome nos mistérios que envolvem sua trajetória. A tal nota dizia que ela teria regressado à corte num barco que partira de Montevidéu. O que ela teria ido fazer tão perto do teatro da guerra? Jovita tinha finalmente conseguido matar paraguaios sob a tolerância de algum comandante? Ou como apregoava um outro jornal, teria ido encontrar seu amante de Jaicós – única razão pela qual teria se alistado desde o princípio. Ela sempre negou essa afirmação, porém estes são alguns dos pontos cegos e sem resposta na biografia de Jovita. 

A última vez que Jovita saiu nos jornais foi no obituário do Correio Mercantil, três anos após seu début como heroína nacional. Em suas andanças pelo mundo equívoco, tinha se tornado amante de um engenheiro galês e ao saber de sua partida súbita, vai até sua casa e após redigir um bilhete dá o “tristíssimo exemplo de uma coragem mal empregada”, cravando um punhal no coração. Rejeitada por todos, agora Jovita tinha decidido rejeitar a própria vida. O bilhete suicida que poderia esclarecer algumas lacunas nunca foi encontrado. 

Mesmo sem nunca ter conseguido ir à guerra, foi em outro campo de batalha que Jovita se sobressaiu: naquele que luta pela igualdade de direitos. No final de 2018, passados 154 anos de sua reivindicação, a Academia Militar das Agulhas Negras finalmente abriu a primeira turma de cadetes mulheres. A história da heroína nacional ou prostituta que em meio a um patriarcado feroz se libertou da prisão doméstica para lutar por amor à pátria, por amor a um homem ou por solidariedade feminina, agora tem finalmente o seu lugar. Não foi em vão. 

 

Jovita Alves Feitosa – Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte, Chão Editora – 150 páginas, R$ 44

 

 

 

Nataly Cabanas é uma jornalista que atua e uma atriz que escreve.  Atualmente está desenvolvendo seu primeiro roteiro de ficção. Apaixonada por cinema, gosta mesmo é de escrever sobre mulheres antigas

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