Universo musical parece moderninho, mas é ordinário

Estamos em 2019 e 97% das composições musicais continuam sendo de homens cis e apenas 2% são produzidas por mulheres. Mas há manas na lida para mudar esse cenário!

26.08.2019  |  Por: Carime Elmor

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Universo musical parece moderninho, mas é ordinário

O som transa com o que quiser. Sua imaterialidade rompe as retóricas conservadoras sobre corpos e formas. Não me interessa aqui as tags que separam os estilos musicais, mas gênero no âmbito da sexualidade mesmo. Uma composição passa por qualquer corpo, (trans, queer, cis), pertencente a uma pluralidade de raças, etnias e classes. O corpo é apenas um caminho, um condutor para a criação e a escuta. “A obra está acima do artista, do produtor e do técnico”, afirma Florencia Saraiva-Akamine, engenheira de som. 

É justamente por não ter gênero que não há razão para que, em 2019, mais de 97% das composições continuem sendo produzidas por homens cis. 

Toda vez que Marisa Monte entrava em um estúdio para gravar seus premiados discos – de canções escritas por ela – tinha completa autonomia das etapas de produção. Mas era difícil uma gravadora bancar uma ficha técnica onde uma mulher assinava sozinha como produtora. “Marisa Monte fazia parceria com alguns caras, mas quem mandava musicalmente era ela. Fernanda Abreu também tinha uma força na produção do próprio trabalho. Mas mesmo assim, pude ver que sempre tinha um cara assinando junto”, conta Florencia, que chegou a ser técnica de quem ela acredita ser uma das precursoras na produção musical brasileira: Jane Duboc. Jane abriu seu estúdio e a Jam Music, gravadora na Barra da Tijuca. Era ela quem escolhia as bandas que iria produzir e lançar pelo selo.

Sempre existiram mulheres produzindo discos, mesmo que fossem de suas próprias bandas ou de carreiras solo, mas o fato é que a maioria não teve a chance de se assumir produtora musical. Uma pesquisa realizada pelo Annenberg Institute, chamada “Inclusion in the Recording Studio?”, divulgada este ano, revela que dentre as 700 canções analisadas apenas 2,1% são produzidas por mulheres. Estamos falando de 2019.

Precursora do áudio digital

Florencia iniciou muita gente na década de 1990 enquanto se firmava como precursora do áudio digital. Katia Dotto, foi uma de suas ex-alunas. Hoje, ela grava, mixa e masteriza artistas entre Brasil e Estados Unidos. Atualmente, ambas estão na equipe da Casa de Música Escuta as Minas, projeto do Spotify Brasil que está com edital aberto até o dia 28 de agosto para gravar 12 novas compositoras ou bandas femininas, em um estúdio onde toda a equipe de áudio e produção musical é formada por mulheres.

O sucesso de Florencia se deu na época de transição entre o analógico e o digital. Curiosa, ela insistia em aprender a editar músicas pelo computador, enquanto os técnicos mais velhos resistiam ao novo formato. Até que Mairton Bahia, criador do curso de Produção Fonográfica da Estácio de Sá, deu um mês para que ela mixasse um disco usando o Pro Tools. “Foi assim que eu passei a ser uma ferramenta útil no estúdio. Os caras ficavam me chamando porque eu sabia usar uma coisa que ninguém queria aprender”.

Florencia foi aluna do primeiro curso de produção fonográfica da Rio Música, teve como mestres Guilherme Reis e Fábio Henriques. Em seis meses de curso, começou a estagiar em estúdio. Anos mais tarde, seria ela a responsável por ensinar uma geração sobre áudio. Embora tenha tido pouquíssimas alunas ela percebeu que as mulheres sempre foram as que mais persistiram na área. Possivelmente, só o fato de estarem ali, matriculadas em um curso de áudio, já exigia um esforço capaz de driblar o preconceito de gênero na área técnica da música. Elas não desistiriam facilmente. 

“Eu tenho 25 anos de áudio, e na minha vida vi poucas produtoras em estúdio produzindo sozinhas. Hoje, vejo mais mulheres, como a Mahmundi, a Mônica Agena, a Natália Mallo, a Mariá Portugal, a Naná Rizzini. Consigo citar várias, nos anos 1990 não era assim”.

Mahmundi. Foto: Divulgação

Atualmente, a produtora musical de mais renome no mundo é a Sylvia Massy, mulher que teve um papel de extrema importância na construção da sonoridade rock’n’roll das últimas décadas, tendo produzido Red Hot Chilli Peppers, System of a Down, Jhonny Cash, Slayer, Deftones, Tool, entre outros, e também a banda brasileira Far From Alaska, de Natal.

Os projetos Sound Girls e WAM (Womens Audio Mission) operam no sentido de fechar a crítica lacuna de gênero nas carreiras que envolvem tecnologia criativa. O WAM, que funciona em um estúdio em São Francisco, nos Estados Unidos, consegue atrair 2 mil garotas carentes todos os anos para desenvolver projetos. Como resultado, a organização já foi responsável pela colocação de mais de 700 mulheres no mercado de áudio, em cargos pagos de multinacionais como NPR, Google, Pixar e Dolby Laboratories.

No Brasil, em 2019, além do Escuta as Minas, do Spotify, existe o Roque Pense, criado na baixada fluminense por produtoras culturais. No canal do YouTube do projeto, estão as live sessions de bandas com mulheres (ou mistas), gravadas por uma equipe feminina, que vai desde o audiovisual, até luz, som e produção executiva. Atualmente, elas estão filmando a terceira temporada no estúdio Labsônica. Dentre as selecionadas, está a Tambores de Safo, grupo de Fortaleza que pela primeira vez está tendo a chance de registrar o “Funk da Solução”, uma música antiga que virou hit e ainda não estava gravada por falta de recursos.

O estúdio funciona, também, como um laboratório criativo, um espaço de ocupação para a banda se desenvolver. O projeto tem Daniela Pastore como técnica de som, auxiliando em todo o processo. Um outro viés do Roque Pense é o de formação, e por isso oferecem cursos voltados para a área de produção musical e técnica. “Uma das premissas é aproveitar estas oportunidades para compartilhar conhecimento entre as mulheres”, explica Giordana Moreira, produtora executiva.

Mulheres trans produtoras musicais

Natália Carrera. Foto: Sillas Henrique

Natália Carrera é uma produtora musical trans, além dela, também existe a Malka, em São Paulo, e possivelmente tantas outras desenvolvendo trabalhos autorais. Natália foi quem produziu “Letrux em Noite de Climão”. Seu maior interesse é em compor arranjos, ela entrou no mundo da produção musical quando começou a compor trilhas para cinema ligando seu computador a um aparelho de som multi-CD dos anos 1990. “A trilha faz com que você tenha que compor as músicas já pensando no produto final, sendo que elas não serão tocadas ao vivo.  Com isso, você tem toda a liberdade que o computador pode te dar. Você pode, sozinha, gravar 20 instrumentos. Isso foi se aflorando dentro de mim, porque na verdade eu já tinha muita vontade de mexer em estúdio, só não tinha oportunidade”, diz.

Sua busca é pela experimentação, todavia, sem perder a música pop de vista. Algo que tem bastante a ver com a proposta do primeiro disco solo de Letrux. “Um bom exemplo é a música Coisa Banho de Mar, que tem aqueles teclados cheios, a música toda etérea, e a letra carregada de poesia, só que a referência da bateria vem do Hip Hop”. Natália também produziu os novos singles da Mika Ev, e foi quem fez a direção e produção musical do Cinebloco, fanfarra do Rio de Janeiro. Atualmente, ela está produzindo seu primeiro disco solo e confessa que não conseguiria produzir um disco de outra pessoa sem tocar nenhuma nota.

“Tem gente que fala que uma banda é muito boa quando o show é igualzinho ao disco. Isso para mim não é tão interessante. Eu gosto de pensar que o disco é uma coisa, e o show é outra. Prefiro experimentar no disco, e depois pensar em como me virar no show”. Para Natália, o meio dos anos 1960 foi um rompante nesse sentido, já que até então os discos eram uma forma de registrar o que a banda tocava ao vivo. “Tanto que até hoje a gente consegue ouvir os discos do Beatles, mas o show é impossível. O máximo que a gente consegue ver são filmes que tentam capturar o que foi aquele show. Já os discos, são realmente o que eles se propuseram enquanto banda. Ali está a obra. Os discos foram eternizados e até aquele momento ninguém pensava na música pop como uma coisa longeva”.

A autonomia de mulheres compositoras

Sentei para um café com Mariá Portugal, que criou para si um método em que o próprio modo de fazer é experimental. Para isso, convidou instrumentistas da Quartabê, Música de Selvagem, Quarteto Solto, assim como Thiago França do Metá Metá e Paulo Braga com quem toca no Arrigo Barnabé, para ocupar as seis salas do Dissenso Studio, que também é gerido por uma equipe feminina. Os músicos não tiveram acesso às canções previamente, e a proposta foi improvisarem em cima das partituras apresentadas no dia por Mariá. Cada um fez quatro takes, e agora a baterista e produtora está editando faixa por faixa. Dessa forma, ela captou a leitura espontânea que cada instrumentista fez de sua música. “De uns tempos para cá eu comecei a me interessar muito em improvisação livre.  Aí resolvi fazer uma improvisação em cima das minhas canções, e estou trabalhando essas improvisações em suporte eletrônico”, conta. O disco também terá Tó Brandileone nos vocais.

Mariá, anteriormente, junto ao Ivan Gomes, fez a coprodução do disco homônimo do trio Boleirinho, coproduziu o disco do Sinamantes, com John Ulhôa, grupo do qual é baterista, e foi convidada por Nathália Mallo para co-produzir seu “qualquer lugar”. “Eu sempre co-produzi os discos da minha banda. Sempre gostei  de acompanhar os processos de gravação e mixagem”.

Mariá fez sua primeira trilha aos 20 anos, ao lado da mãe, bailarina, para um espetáculo de dança. “Me interessa trabalhar com artistas que tenham a cabeça aberta e que curtam criar juntos em estúdio. Não me interessa tanto emular uma coisa. O que eu mais gosto é poder entrar em estúdio e não saber o que será feito, ver as coisas aparecerem. O suporte eletrônico abre muito para a improvisação, eles fizeram uma revolução e modificaram a maneira de fazer música pop, inclusive esteticamente”, afirma.

Diversas mulheres produzem seus próprios discos, como foi o caso da PAPISA, projeto de Rita Oliva, que acabou de lançar “Fenda”. Além da produção, ela realizou alguns encontros na intenção de transmitir seus métodos de criação e gravação para outras pessoas. Sara Braga, dos projetos Sara Não Tem Nome e Tarda também está imersa estudando sobre harmonia e arranjos enquanto produz as músicas de sua banda. Betina, que no último ano lançou Hotel Vulcänia, tem buscado mais autonomia em relação ao que compõem e está experimentando produzir em softwares de maneira caseira, assim como Amanda Magalhães, que lançou três singles e videoclipes: “Fazer Valer”, “Coração Só” e “Vai Ouvir”. Naná Rizzini, baterista e produtora, tem três discos produzidos por ela, e recentemente deu uma aula de produção musical para mulheres no Escuta as Minas. Outro nome de destaque é a Badsista, produtora da Linn da Quebrada, Lai di Dai, e que acaba de produzir o disco “A linha tênue”, da Alt Niss. 

Em 2019, uma coletânea proposta pela SÊLA, está apresentando semanalmente músicas produzidas por mulheres.

A criação de uma teia pela música

Gabi Lancelloti, diretora de marketing do Spotify Brasil e responsável pelo Escuta as Minas, sintetizou o projeto com uma frase: “A criação de redes entre mulheres é inquebrável”.

“Queremos selecionar meninas que não estão assinadas com gravadoras e que estão em busca de desenvolver um trabalho autoral, porque a ideia é formar uma base para a artista”, explica. Além do estúdio, o projeto prevê uma frente educativa, oferecendo workshops gratuitos para quem quer aprender a gerir sua própria carreira. “Temas que vão desde como começar a pensar criativamente seu trabalho, até como bookar shows e cuidar de sua imagem internacional e nacional”. Em setembro, técnicas de composição, mixagem e masterização serão alguns dos assuntos abordados.

A Casa de Música abriu em junho, e ao longo das semanas, as artistas passam horas trocando referências com suas produtoras e também recebem visitas de “madrinhas”, como Negra Li, Liniker e a dupla Maiara e Maraisa, com quem sentam para fazer a audição do novo material que estão gravando. “É um estúdio só com mulheres, o que permite uma troca profunda, tranquila, sem medo de represália, de ser cortada, de falar o que quer”, complementa Gabi. As seis produtoras trabalham com universos diversos: música gospel, sertanejo, mpb e rock’n’roll, sendo que a mistura é sempre bem-vinda. Mônica Agena, produtora de rock, desafiou-se a trabalhar com Luana Marques, cantora sertaneja. Além de Mônica, Mayra Maldjian, Daniela Araújo, da música Gospel, Lan Lan, produtora musical, ex-percussionista da Cássia Eller, e Mahmundi são produtoras que até o momento foram alocadas no projeto.

Mahmundi é um bom exemplo de mina que vem produzindo todos os seus discos desde 2012. Em 2017 ela começou a produzir outras pessoas. “Cada vez mais gosto de conversar com o artista, descobrir quem ele é, o que pensa, e a partir daí buscar, com ele, uma solução em canção”. Em 2019, ela produziu e compôs uma canção com a Liniker e os Caramelows, com a banda Plutão Já Foi Planeta, e também um single com Diogo Nogueira e Rafael dos Anjos. Sobre a experiência do projeto Escuta as Minas, ela conta: “Teve muita conversa, terapia, troca, foi muito especial. Eu queria ter participado de um projeto como esse com meus 18, 19 anos!”.

A rede está formada e há investimento para que se rasgue na unha o espaço para que as minas assinem, sozinhas, como produtoras.   

 

Carime Elmor é jornalista, vive em São Paulo, e atua principalmente nas editorias de cultura, passando por temas como gênero e direitos humanos. Criou o Delineares, uma série sobre caderninhos e processos artísticos, foi editora da revista Lampejo, toca bateria em uma banda de garotas e está escrevendo seu primeiro livro-reportagem.

 

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