Usar o sobrenome do marido: entre o sim, o não e o jamais

Imposição patriarcal ou romantismo? Trocar de sobrenome ao casar já foi uma obrigação para a mulher, mas hoje é considerado ato de resistência LGBTQ. O passado sombrio e o futuro otimista dessa tradição sempre polêmica

15.01.2020  |  Por: Karoline Correa

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Usar o sobrenome do marido: entre o sim, o não e o jamais

Era 1960 quando Fátima se casou com o primeiro homem que beijou na vida. Na época, ela tinha 18 anos recém-completados e de Fátima Aparecida Santana passou a responder por Fátima Aparecida Santana Antunes, adotando o último sobrenome do marido aos seus documentos. Na vigência do Código Civil de 1916 e até o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), o acréscimo de um sobrenome do cônjuge era obrigatório para as esposas, e tão somente para elas. Depois de 1962, tornou-se facultativo, mas essa não foi uma informação muito difundida – muitas mulheres que se casaram nos anos seguintes não foram informadas de seus direitos.

Pois Fátima entrou naquele casamento como quem entrava em um funeral. Casou não por vontade própria, mas em nome de “uma tal convenção social”. Sair do interior do Paraná para cursar a faculdade de direito faria mais sentido do que cuidar de uma casa e ter filhos. Mas, como a maioria das mulheres, ela não respondia por seu destino. Como mandava o figurino, engravidou logo no primeiro ano de casada e se consolidou como a senhora Antunes. Logo teve o segundo filho e se havia algo presente em todo o relacionamento, era a violência.

Em 1977 foi aprovada no Brasil a Lei do Divórcio (nº 6.515/77), e Fátima começou a sonhar com a separação. O que conseguiu com muito esforço só em 1989. Tinha 47 anos de vida e 29 de casada.

O desquite trouxe um alívio, mas uma coisa a incomodava profundamente: continuar reconhecida como senhora Antunes. Carregar o nome de família do homem que ela nunca quis por perto e que a violentava era como levar consigo um “fardo”. Em situações informais, ela assinava apenas Fátima Aparecida Santana. “Mas me rasgava o peito quando não tinha saída e precisava usar o sobrenome dele”, recorda. Em 2002, depois de “muita burocracia” –  inclua aí incontáveis idas ao cartório e a contratação de uma advogada, porque com o preenchimento “daqueles papéis” Fátima não sabia lidar – ela retirou o Antunes de seus documentos. “Eu precisava disso para concluir meu processo de separação. Era simbólico. Tão simbólico que me saiu um caminhão das costas quando consegui.”

Coincidentemente, foi neste mesmo 2002 que o Código Civil incluiu a possibilidade de o marido (e, por extensão, o companheiro) acrescer o sobrenome de sua parceira – se assim fosse sua vontade, claro. Isso trouxe uma igualdade de direitos e abriu uma saudável discussão sobre as convenções sociais. Pra que serve a troca de sobrenomes?

‘Acho até démodé’

O ano era 2016. Rebeca*, mãe de Catarina, de 2 anos, se preparava para casar com o amor de sua vida, Fernando*. Ela estava grávida de seis meses dele e feliz com o desejo de Fernando em criar a enteada como se fosse sua filha. Tudo quase certo, exceto por uma reivindicação do noivo: ter o sobrenome da esposa, e por consequência o sobrenome de seus filhos, em seus documentos. Rebeca aceitou sem questionar. “Ele queria isso por romantismo, mas também porque tínhamos um plano de morar nos Estados Unidos num futuro próximo e nos foi dito por um advogado que ter um sobrenome em comum para toda a família facilitaria os vistos”, conta ela, que sequer chegou a pensar em acrescentar o sobrenome dele ao seu: “Não fui criada tendo isso em vista. Na verdade, acho até démodé. Parece uma marcação, como se a partir dali você fosse daquela pessoa.” Juridicamente não é mais assim, mas a verdade é que historicamente sim: a mulher recebia o sobrenome do marido porque passava a ser dele.

Tanto a escolha de Rebeca quanto a de Fernando endossam uma tendência no estado de São Paulo. O número de esposas que escolheram não alterar seus documentos atingiu o ápice em 2017: elas representam quase um terço das mulheres que se casaram naquele ano. Do outro lado, a quantidade de homens que aderiram ao sobrenome da esposa ficou estável desde a permissão em 2002. Sofreu queda em 2016, mas voltou a subir em 2017, com quase 6.000 ocorrências do tipo. Os dados foram levantados pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen-SP).

Em 2013, três psicólogas realizaram um estudo na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Aline, Daniela e Angela conversaram com sete mulheres entre 27 e 44 anos residentes na região serrana do Rio Grande do Sul para saber os motivos delas para o não acréscimo do sobrenome do marido. Em comum, todas relataram uma certa manutenção de suas identidades e legados familiares. “Pra mim, meu nome sempre foi uma coisa muito forte. Me incomodava pensar que ele seria mudado. Quando casei já tinha minha vida resolvida e essa ideia me agredia realmente”, respondeu uma delas. “Após anos de vida criando uma identidade, me parece incoerente assumir outro sobrenome. Não haveria com o que me identificar, pois não se trata de um nome que tem a ver com minha trajetória”, disse outra. “Eu considero o meu sobrenome parte da história da minha família, mudá-lo apagaria um pouco essa história”, contou uma terceira participante do estudo.

“Fato é que a mulher assumir, pelo casamento, o sobrenome do marido é uma tradição de origem patriarcal, dos tempos em que éramos tratadas como propriedade dos homens. Enquanto isso, hoje em dia, o homem adotar o sobrenome da esposa tem conotação romântica. Não poderia ser diferente. Afinal, quando esse direito chega para eles, chega em uma sociedade mais igualitária e como escolha, não obrigação”, explica Isabela Guimarães Del Monde, advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas.

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Nos Estados Unidos, país onde mulheres casadas podem escolher manter seus nomes de solteiras ou adotar o do cônjuge, mais de 70% da população afirmam que a segunda opção seria “mais cabível”. E 50% acham que deveríamos ser, inclusive, obrigadas por lei a incluir o nome do marido em nossos documentos. A pesquisa leva o nome de “Hillary Rodham Versus Hillary Clinton: Consequences of Surname Choice in Marriage” (“Hillary Rodham x Hillary Clinton: Consequências da Escolha do Sobrenome no Casamento”) e foi realizada pela socióloga Emily Fitzgibbons Shafer, da Universidade Estadual de Portland. Ao longo das 17 páginas de seu estudo, Emily tenta entender a influência da escolha, ou da recusa, do sobrenome do marido na vida de uma norte-americana nos dias de hoje. “O argumento mais comum apresentado por quem defende a mudança parte de uma crença de que as mulheres deveriam priorizar casamento e família à frente delas mesmas”, observa a pesquisadora, que usa como ponto de partida de seu estudo a mudança de nome feita por Hillary, democrata que perdeu as eleições presidenciais de 2016 para Donald Trump. “Hillary Rodham se tornou Hillary Clinton depois de sugerirem que o uso do nome de solteira foi uma das razões para a derrota de seu marido na tentativa de reeleição como governador (do Arkansas)”, explica. Emily lembra que Hillary foi fortemente criticada por manter o sobrenome de solteira. “Isso foi visto como ofensivo, e ela foi classificada como esposa ingrata.”

Por isso, Emily quis também saber como as mulheres se veem frente a essa decisão. Entre aquelas com nível de instrução elevado, a socióloga descobriu que a mudança de nome traz pouco reflexo negativo na maneira como elas se avaliam no casamento. Já em grupos de baixo grau de instrução, há a percepção de que mulheres que não trocam de nome parecem menos comprometidas com o relacionamento. “Me pergunto por que ainda temos tão poucos homens adotando o sobrenome das esposas nos Estados Unidos. Claramente é um reflexo das nossas visões culturais que têm no patriarcado a base das relações familiares”, termina. Neste contexto, não é de se estranhar que advogados aconselhem casais interessados no visto norte-americano a ter um sobrenome comum.

‘Ter aquela marca em mim’

Quando decidiu adotar o nome de família de Felipe*, Débora* o fez por “livre e espontânea escolha”. “Era meu segundo casamento. Eu queria de verdade que durasse a vida inteira. Me deu uma vontade incontrolável de ter aquela ‘marca’ em mim, de fundir as nossas histórias. Fazia muito sentido quando estávamos no cartório, fazendo juras de amor eterno”, conta ela, que se lembra com detalhes do dia do registro, “em que o escrivão sequer perguntou se o noivo gostaria de fazer o mesmo”. Felipe de fato não acrescentou nada aos seus documentos. O casamento durou um ano e atualmente Débora está em outra relação, mas mantém o sobrenome do ex mesmo depois de sete anos separada. “Vou resolver isso em breve. Até porque é provável que eu queira ter o nome do meu novo marido”, diz, rindo alto.

Levar o sobrenome do ex consigo para o resto da vida pode ser um fardo, como foi para Fátima, a personagem que abre este texto, mas em outros casos pode ser uma decisão consciente. No meio artístico, onde o nome é uma marca e pelo qual você fica reconhecida, trocar de sobrenome depois da fama pode ser um mau negócio. Talvez isso explique as escolhas de Gabriela Pugliesi, Luiza Brunet, Monique Evans e Gloria Kalil. Todas elas preservaram os nomes de família de ex-companheiros. Em entrevista à Marie Claire em 2015, Monique respondeu por que decidiu manter o sobrenome de Oswald Evans, assassinado a tiros durante um assalto em 1977. “Quando comecei a ficar famosa, estava casada com ele. Nos separamos um tempo depois que estourei e, se trocasse o sobrenome naquele momento, ia atrapalhar minha carreira.”

Em janeiro de 2019, a boleira, blogueira e youtuber Cíntia Costa teve seus 15 minutos de fama por dividir em sua conta no Twitter a frustração que foi adotar o sobrenome do ex-marido.

O post era para chamar a atenção para a quantidade de documentos que Cintia precisava alterar para ter de volta seus registros de solteira. Pois foram 45 burocracias diferentes. Da matrícula na academia, passando por cartões de crédito, título de eleitor, imposto de renda, passaporte, cadastro no PayPal, contas de gás e luz até registro de imóveis. “Quando você acha que finalmente mudou tudo e o seu nome antigo morreu, tal qual um zumbi apocalíptico, ele ressurge do além para te assombrar”, finalizou Cíntia, que ainda aconselhou: “Jovens, não mudem de nome jamais.”

Mas, há quem recorra à burocracia pelo motivo oposto. No final do ano passado, um casal apelou ao Supremo Tribunal de Justiça para que a mulher pudesse acrescentar mais um sobrenome do marido com quem havia se casado há sete anos. O caso chegou ao STJ depois de a Justiça de São Paulo ter negado o pedido para mudar a certidão de casamento. O casal alegou que o Código Civil e a Lei de Registros Públicos não impedem a inclusão do sobrenome do cônjuge após casamento e o STJ concordou, concedendo o direito à alteração na certidão. A justificativa para a mudança foi a notoriedade social do novo sobrenome.

‘Ter o sobrenome dela foi uma questão de orgulho LGBTQ’

Mas é preciso lembrar que histórias diferentes têm motivações e simbolismos diferentes. Anna e Giuliana se casaram em setembro de 2018. O casal faz parte da toada de namoradas e namorados LGBTQs que oficializaram suas uniões com medo das mudanças que poderiam acontecer nas leis e no país. No caso delas, uma acrescentou o nome da outra aos seus documentos. Se tornaram assim: Anna Maria Nunes de Freitas e Giuliana Nunes de Freitas. Ao contrário das mulheres que se recusam a alterar seus nomes, Anna e Giuliana fizeram questão de fazer isso e sentiram orgulho em exibir seus novos documentos. A antropóloga Caroline Cotta de Mello Freitas, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, analisa o porquê: “Mulheres lésbicas mal podiam assumir seus afetos em público até ontem. Imagine então casar e ostentar o sobrenome da esposa?! Era impensável para elas. Fazer isso agora tem uma conotação diferente do que tem para mulheres cis e heterossexuais.” Giuliana confirma: “Além de facilitar burocracias e logo me identificar como a cônjuge da Anna, ter o sobrenome dela foi uma questão de orgulho LGBTQ, o orgulho de assumir o meu amor em público, sem precisar esconder de absolutamente ninguém.”

A antropóloga ainda lembra que não só as mulheres LGBTQ tiveram por muito tempo esse direito negado, mas também as mulheres negras. “Quanto mais escura é a pele, mais difícil é ter uma união, formal ou informal. Estamos falando aí da solidão da mulher negra. Ou seja, o que pode ter sentido de opressão para umas, teria sentido de direito para outras”, continua. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 2010 vai ao encontro do que diz Caroline: a raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais. Dados do Censo daquele ano mostram que 70% dos matrimônios no país ocorreram entre pessoas de mesma cor e que as mulheres negras (7%) foram as que menos se casaram formalmente.

“Com todas as mudanças sociais que aconteceram ao longo do tempo para as mulheres, o casamento já não é mais fundamental para que a gente exista no mundo”, ressalta a antropóloga. “As uniões amorosas carregam novos significados e ter ou não o sobrenome do marido, também. A questão é, enquanto mulheres somos diferentes e carregamos privilégios diferentes. Que bom que algumas se sentem livres para não alterar seus documentos, mas penso que somente estaremos bem quando outras também conseguirem ter a mesma sensação. E, para isso, devemos olhar para o que vivem as mulheres negras, lésbicas, trans, indígenas e todas aquelas que tiveram negados direitos e trânsitos sociais”, completa.

 

Karoline Correa é ilustradora e escritora. Gosta de problematizar com as amigas e odeia minibios

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