Vida e morte das palavras na web

Um guia resumido do que existe de mais quente do vocabulário do século XXI, e o que você já pode aposentar

13.04.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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Vida e morte das palavras na web

Em tempos de tanta treta e lacre, nem sempre dá para acompanhar os termos preferidos dos mais renomados opinólogos de todas as áreas. São gírias, vocabulário da militância, conceitos filosóficos, e no meio do caminho de tanta informação, palavras mortas pelo excesso de uso. Além de, é claro, expressões do pajubá – dialeto oriundo do yorubá adotado pelas LGBTs. Eis então esse pequeno dicionário altamente parcial, obviamente polêmico e com data de validade tão incerta quanto pequena.

Afeto: O modo que tem sido usado surgiu a partir de um conceito acadêmico, criado por Giles Deleuze. É muito comum em crítica de arte, mas segundo um amigo, tornou-se praticamente eufemismo para nepotismo. “O afeto dos encontros na experiência artística” ou: chamei meus amigos de boteco para participarem desta exposição coletiva. Outro conceito deleuziano em voga nas artes é potência.

Empoderamento: Anglicismo que surgiu a partir de empowerment – a capacidade de todo o indivíduo de ter poder sobre si mesmo apesar das circunstâncias adversas. Faz alguns anos que vemos o empoderamento da palavra empoderamento. Como tendência, eu aposto no mix de estampas, combinando com vocábulos mais cotidianos: empoderamento nerd, empoderamento pancinha, empoderamento bagunça, etc. Assim, no futuro, zeraremos todos os shaming.

Lacre: Aqui, a palavra adquire importância tanto no movimento negro quanto LGBT. Em relação ao primeiro, é uma forma de combater o racismo através da estética e política, muito presente na geração tombamento. Na comunidade LGBT, é um termo pajubá advindo de Roma Gaga, subcelebridade da internet, que cunhou a expressão: “lacrou o cu das inimigas”, no sentido de: “você arrasou tanto impossibilitou as inimigas de terem prazer”. Daí,  migrar para o universo dos textões da internet foi um pulo. Em tese, seria um argumento tão definitivo que encerra a discussão. Na maioria dos casos, o debate ainda dá muito pano para a manga, pois fechamento irrevogável de debate costuma ser meio autoritário.

Lúdico: Entrou na lista de palavras mortas. Nos anos 90, o gerúndio foi assassinado pelos atendentes de telemarketing. Na década seguinte, foi a vez de diferenciado, ser derretido pelos corretores de imóveis. Agora, lúdico acaba de ser soterrado pela publicidade – que, convenhamos, é a coisa menos lúdica que existe. No final, John Lennon estava certo: “O lúdico acabou”.

Literalmente: Hoje, é muito usado como ênfase, e não no seu significado… literal! Outro dia, eu disse para meus amigos: “Claudio literalmente me deu um bolo!”, querendo dizer que ele me deixou esperando, sem se dar ao trabalho de desmarcar, para então ouvir como resposta: “Que fofo, foi um bolo de chocolate ou laranja?”. Pois é, uma vergonha para uma romancista. No conto Os Mortos, James Joyce diz: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente com o coração na boca”. O literalmente pertence à Lily. Num discurso indireto livre, Joyce aponta de forma sutil que a personagem é meio burrinha. Particularmente, tenho especial apreciação pelo uso equivocado da palavra quando alguém diz que está “literalmente cagando e andando”, sempre rio muito.

Narrativa: Outro dia alguém disse que a narrativa da palavra narrativa estava esgotada, mas discordo. Nesse caso, trata-se um conceito teórico que funciona como sinônimo de versão, e não como o uso corrente, como sinônimo de história, trama, enredo. Ideal para tempos de fake news, disputa política e guerra cultural.

Propósito: Essa é a palavra de ordem das novas espiritualidades soltas com pegada oriental: nosso propósito seria nossa missão, nosso destino, a direção que deveríamos agir. Está na mesma família de gratidão – que é uma nova forma de dizer “obrigado”. Ambas podem ser facilmente encontradas em fotos de por do sol no Instagram.

Prestígio: É sempre usada de modo equivocado em aniversários, lançamentos de livro, aberturas de exposição. O convidado chega para o anfitrião e diz: “vim aqui te prestigiar!” – a não ser que seja dita pela Rainha da Inglaterra, ou alguém de igual importância, não faz o menor sentido, é uma frase vazia. Espero ansiosamente o  dia que o anfitrião vai responder: “Querido, você é só meu vizinho de condomínio, não está me dando prestígio algum!”.

Privilégio: Essa é uma discussão interessante: privilégio versus direitos. Não é privilégio ter saneamento básico, e sim é um direito que deveria ser universalizado. Por outro lado, magistrados defendem que o auxílio moradia para quem já tem imóvel na cidade é um direito, mas na verdade é privilégio. Portanto, uma definição adequada para os dias atuais seria dizer que privilégio é um direito seletivo. 

Pungente: Se potência e afeto são onipresentes nas artes plásticas, e propósito reina nos retiros new age, pungência é hit na crítica literária e nas orelhas de livros. Nos últimos meses, me deparei com uns quinze livros sendo descritos como pungentes, sintoma dos nossos tempos em que a obra de arte vale pelo impacto emocional imediato. Talvez  pungente sirva para convencer o possível leitor que ele terá uma experiência de leitura, que aquele livro não lhe passará batido, que valerá os quarenta reais gastos, etc.

Em 2018, o correto seria que esse glossário fosse atualizado mensalmente – ou ainda, exibido no Snapchat, dado que cada termo pode ser ressignificado no espaço de 24 horas.  Há também planos de uma newsletter semanal com a atualização de todas as tretas da internet: Tretências (ou talvez TretaTrends?).  Porém, acredito que essa pequena amostra de tendências semânticas seja um bom início. Voilà!

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