Vigiando nossos corpos, destruindo nossas mentes

Católica de uma família praticante, a youtuber Jessica Tauane, criadora do Canal das Bee, cresceu rodeada de culpa e medo de sua sexualidade. Quando o cansaço físico e mental bateu, seu cérebro deu pane e ela foi internada com um forte quadro de depressão e bipolaridade

18.12.2018  |  Por: Jessica Tauane

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Vigiando nossos corpos, destruindo nossas mentes

Se você me dissesse há uns três anos que eu seria internada numa clínica psiquiátrica em 2017 achando que estava participando de um reality show-gincana apresentado pela humorista norte-americana Ellen DeGeneres com a ajuda secreta dos meus amigos, familiares e da Alicia Keys (sim, a cantora), eu daria risada de você e te chamaria de louca.

Pois aconteceu.

E, como sou youtuber, a criatividade aqui é tanta que também acordei achando que era Karl Marx (modestíssima, ela!), fui tomar café da manhã pensando ser Jean Wyllys e terminei o “show” numa versão meio junkie de Hermione Granger. Sim, eu realmente pensei ser essas figuras incríveis do meu imaginário. Tudo isso numa manhã.

Mas, espera, como cheguei até essa situação?

Sexualidade enlouquecedora

Sempre tive medo de sexo. Queria muito ser virgem até o casamento e garantir minha entrada no céu. A sexualidade era tão obscura para mim que cheguei a confessar uma vez: “Padre João, é pecado beijar? Porque eu beijei alguns meninos…”. Ele riu e disse que não, mas que “só podia beijo e eu saberia quando fosse pecado”. Me mandou rezar um bocadinho tão pequeno de ave-maria e pai-nosso que percebi que o beijo estava tranquilo mesmo. Perdi o medo de beijar, o que foi legal… até descobrir meu clitóris.

Não consegui confessar a masturbação. Era demais. Aí sim eu soube o que era pecar. Como sentir algo tão bom vindo, justamente, de lá? Não podia estar certo! E o pior é que eu não conseguia falar sobre isso com ninguém. Então, sofria sozinha. Decidia nunca mais fazer isso e, claro, não conseguia. Me masturbava de novo e depois rezava chorando, pedindo perdão, achando que ia para o inferno.

Quando pensei que a única barra com sexo na minha vida seria me controlar em não tocar siririca até o casamento para não ser uma pecadora horrorosa, eu conheci o amor.

Sempre imaginei ser hétero. Era a única possibilidade. Até ela aparecer. Quando vi aquela menina pela primeira vez, me deu uma dor de barriga fortíssima, que depois entendi serem as tais “borboletas no estômago” da paixão.

Cruz credo, que sensação horrível! O que era para ser um sentimento lindo e uma fase gostosa da puberdade tornou-se um pesadelo. Ninguém podia descobrir. Calei tudo aquilo da maneira que pude e, de repente, eu sabia estar pecando de novo, só que dessa vez de uma forma bem diferente: era um sentimento, não conseguia escolher não amar. De repente, eu virei o pecado. E aí, minhas amigas, o inferno se tornou realidade, pois tanta confusão na cabeça de uma menina de 14 anos se resumiu em uma doença: depressão.

Transei! E enlouqueci.

A Universidade me abriu um mundo novo: conheci pessoas iguais a mim, que também estavam sofrendo por terem sido criadas neste sistema. Beijei uma menina, li livros que contestavam a Bíblia. Fiz uma tatuagem, uma frase do meu Grande Livro Sagrado. Vi filmes que me abriram horizontes, avistei horizontes em novos estados e Estados… Me transformei numa pessoa um pouco mais consciente da minha existência. Mas só um pouco.

Me formei em Comunicação e Multimeios e meu TCC foi um canal no YouTube. A ideia era falar de homofobia e assim nasceu o Canal das Bee. Eu precisava falar sobre aquilo que tanto pulsava no meu coração. E sei que muitas outras pessoas também precisavam ouvir as coisas que eu tinha a dizer, as experiências por que passei, e que haviam mais pessoas como elas no mundo. Eu sabia – ô se sabia! – a diferença que isso poderia fazer na vida de alguém.

Depois de um tempo, com a ajuda dos meus parceiros, bolei um plano legal. Continuaríamos com o Canal das Bee, manteríamos também o canal Gorda de Boa (parênteses criativo aberto na minha vida, outro canal no YouTube sobre meu corpo, que decidi lançar depois que comecei a receber xingamentos de “baleia”, “orca” etc.), que estava rendendo um dinheiro que daria para nos manter, e lançaríamos oficialmente um projeto social, o Bee Ajuda, que botaria um psicólogo todos os dias para acolher casos de jovens LGBTs em situação de vulnerabilidade, contando com o auxílio de uma rede voluntária lindamente armazenada em banco de dados nas nuvens, como manda o figurino das startups sociais. Lançamos uma campanha de financiamento coletivo e conquistamos a meta!

Mas, quando a correria da campanha passou e começamos a trabalhar, eu pifei. Ou melhor: meu cérebro pifou.

O que aconteceu comigo foi um desajuste químico, desequilibrando meu humor para a extrema fase da euforia de um bipolar: a chamada mania. E minha mania, criativa que sou, veio junto com uma psicose de leve. Então, imaginei de um tudo durante bastante tempo, como a história que contei acima. Para mim, tudo aquilo era real.

Clínica? Manicômio? Que nada: era meu brejo!

Ninguém merece ser internado, preso, ter seu direito de ir-e-vir limitado. É muito angustiante. Quando cheguei na clínica psiquiátrica, ainda não tinha entendido o que tinha acontecido. Lembrava de alguns flashes dos últimos dias, ainda imaginava estar na gincana da Ellen e da Alicia.

Quando percebi estar realmente internada, bateu o desespero. Sabia que não adiantava chorar ou tentar fugir: joguei tudo em forma de ódio em cima justamente da pessoa que mais amo no mundo, minha mãe. Escrevi uma carta tão desaforada a ela, que até hoje peço perdão. Sendo aquele ser humano maravilhoso e iluminado que é, ela sempre leva o assunto para um detalhe cômico, tipo a carta ter sido escrita em papel higiênico por não ter folha sulfite na clínica… e logo caímos na risada.

Mas o fato é que olhar para o mundo e só ver MURO é uma barra. Olhar para o mundo e não ver o horizonte me tirou mais ainda de mim. Eu melhorei na clínica, é inegável. Mas a internação deve ser a última decisão numa crise psiquiátrica, porque ninguém merece aquela solidão.

Reparei que a clínica era composta por muitas mulheres não-heterossexuais. A maioria de nós ali presentes não cumpriam bem com o estereótipo do que é “ser mulher” para a sociedade. Havia mulheres, principalmente, de presença muito marcante. Que não estão dentro da norma – e não parecem conseguir estar, por mais que tentem. Como eu.

Hoje em dia, tenho certeza de que – além do componente genético, claro – o que me “enlouqueceu” foi o preconceito e o fato de não poder descansar. Nem quando gozava eu podia descansar. Nem quando amava podia descansar. Pautar a vida em cima das regras cristãs me fez mal, e quando tentei fazer alguma coisa sobre isso e trabalhar num projeto voluntário, literalmente doei minha vida e foi tão exaustivo que meu cérebro entrou “em tela azul” para se autoproteger.

Histeria

Contar tudo o que aconteceu durante o mês da psicose e da mania (ou da “loucura”, para os íntimos) daria um texto enorme e nenhum de nós tem tanta paciência para ler um texto tão grande na internet, convenhamos. Mas o que realmente gostaria de fazer com esse depoimento é provocar quem está lendo a entender que nós, mulheres, temos questões ligadas à sexualidade que nos matam por dentro. Que nós, LGBTs, temos nossas mentes completamente destruídas quando somos interpelados por questões violentas – física ou psicologicamente. Que nós, pessoas fora do padrão estético de beleza, suamos ao pensar em sair de casa e sermos observados pelos olhares de reprovação de gente que não paga nossas contas e ainda quer dar conta de vigiar nossos corpos.

Parece que não, mas o tanto de exercício que nosso cérebro faz para que consigamos resolver esses pequenos quebra-cabeças diários nos deixa exaustas. A energia disposta para que sejamos mais legais, mais inteligentes, mais “fáceis de aceitar”, mais “simples de tolerar”, nos deixa exaustos. A gente não pode descansar.

Precisamos tirar logo essa faixa dos olhos, porque hoje em dia o mal da nossa sociedade é o fato de que o sexo é obsceno e a guerra é sagrada. Afinal, justiça seja feita: talvez seja hora de tratarmos o sexo como sagrado e a guerra como obscena, vocês não acham?

Não pensem que sou poeta, não. É a letra de uma música da Alicia Keys. 😉

 

Jessica Tauane é fundadora do Canal das Bee, pioneiro em questões LGBT e de diversidade no YouTube. Atualmente, se dedica a seu próprio canal, onde fala sobre empoderamento feminino, autoestima, humor, diversidade, cotidiano, saúde e lifestyle. Dirige o projeto social Bee Ajuda, que acolhe jovens LGBTs em situação de vulnerabilidade

 

1 Comentários

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Uma resposta para “Vigiando nossos corpos, destruindo nossas mentes”

  1. Isabela Bárbara disse:

    Jessica,você é uma mulher maravilhosa!

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