Você sabe o que é um opressor ‘good vibes’?
Num papo com as influenciadoras Juliana Luna e A Papisa, reflexões sobre esoterismo, ioga e autocuidado para pessoas negras e um alô bem direto para os meritocratas da espiritualidade
18.11.2019 | Por: Brenda Vidal
A plenitude não é preta. Pelo menos não no Google: uma busca rápida por “plenitude” na aba “Imagens” do buscador irá apresentar muitas mensagens conceituando a palavra e, claro, aquelas imagens bregas de silhuetas de pessoas esticadas em poses vitoriosas contemplando um pôr do sol. E, se você olhar bem, 99% das pessoas nas fotos são brancas. Mas isso não é uma constatação que se limite apenas ao Google.
Estamos vivendo uma espécie de boom do misticismo e das mais variadas formas de good vibes: sempre tem o momento da noite em que signos são o papo do rolê e tarô e ioga ganham a boca do povo. Muita gente em busca de uma vida mais leve, mais espiritualizada, e sem estresse. Mas você já parou para pensar como, pelo menos no Ocidente, essas narrativas e espaços parecem só ter gente branca? Ou o quanto as pessoas negras às vezes acham que isso é “papo de gente branca”? Já se perguntou como o esoterismo e a intuição podem nos ajudar a ficar bem em um mundo tão caótico sem que a gente se aliene de tudo e vá morar longe da civilização capitalista pós-moderna?
A ioga entrou na vida de Juliana Luna quando ela vivia uma relacionamento abusivo pesadíssimo com o ex-namorado. Através da Bikram Ioga, ela resgatou a sensação de liberdade que sentia desde criança quando mexia o corpo e se conectou com a força necessária para romper com o namoro.
Tati Lisbon nasceu com a intuição de que uma energia tão dona de si quanto uma papisa estava em seu interior desde sempre. Depois de passar muito tempo alimentando uma afinidade com o esotérico, ela fez de uma experiência de trabalho em uma espécie de call center para atendimentos místicos o estopim para se tornar A Papisa, DJ, numeróloga, taróloga e astróloga.
Ambas influenciadoras, Juliana Luna e Tati Lisbon – A Papisa – também têm em comum o fato de serem mulheres pretas enegrecendo saberes, subvertendo o racismo e batendo de frente com discursos good vibes opressores e meritocracias espiritualizadas. Em entrevista, elas falam sobre como fazem dessas linguagens canais de conexão ancestral e sobre como ioga, astrologia, numerologia e tarô podem ser ferramentas de autocuidado e descolonização para pessoas negras. Tudo isso “de boas”, sem ser hipócrita e outras brisas.
Papisa, você considera a astrologia, a numerologia e o tarô saberes elitistas ou embranquecidos?
Tati | A Papisa: Acredito que assim como muita coisa nessa vida a supremacia branca basicamente tomou conta dessas linguagens. Mas nada é só deles e também nada é só nosso. Acho que o processo de resgatar a ancestralidade em meio a esses estudos vem sendo um grande diferencial para mim que sempre me inseri nesses meios por vias autodidatas, porque essas linguagens não eram difundidas, e assim mantenho esse conhecimento comigo. A minha maneira de enegrecer isso é trazendo a minha perspectiva, afinal eu sou uma mulher negra, moro em uma periferia de São Paulo, e não tive os privilégios de muitos, quando na verdade muitos deles são questões básicas.
E você, Juliana, considera a ioga, atualmente, um saber dominado por brancos? Como foi a sua inserção nesse meio?
Juliana Luna: A ioga não é uma atividade que nasceu aqui neste lado do mundo, ela nasceu na Ásia. É muito louco que o povo europeu ocidental foi lá capturar esses saberes – por entender o quanto essa tecnologia é potente – e, como bons colonizadores que são, se apropriaram disso. Agora, no Ocidente, a ioga é dominada por pessoas brancas, assim como todo o resto das coisas. Acredito que ela não é um saber dominado por brancos essencialmente porque é um saber ancestral que vem da Índia, e também existem vertentes como a Ioga Kemética, que vem do antigo Egito, e que é uma tecnologia ancestral. Não veio ao mundo através de pessoas brancas, mas foi cooptada por pessoas brancas para o seu próprio desenvolvimento. Me pergunto muito por que isso aconteceu e hoje percebo que existe nos brancos uma necessidade de se purificar, de voltar para a luz. E não sou eu que tô dizendo isso, são elas próprias que dizem precisar disso. Então, todo o tipo de atividade que dê a elas a possibilidade de ascensão para luz, iluminação ou nirvana, elas querem cooptar, fazer parte, mergulhar. Parece que precisam dessa purificação da alma. Mas, não me entenda mal, existem muitos mestres e mestras que carregam em sua forma de ensinar os valores essenciais da ioga e são pessoas brancas.
Por que você acha que isso acontece?
Juliana Luna: Se você quer tanto purificar a sua alma, é porque a sua alma está carregando um monte de coisas, ancestralmente falando. Não sei se faz tanto sentido para o desenvolvimento da Humanidade, mas como a gente está aqui aprendendo nossas lições, acho que tudo tem um porquê. Tem um porquê de os brancos estarem nesse processo de cooptação de tudo que é sabedoria ancestral. Eles realmente precisam de algo para se ancorar porque são pessoas que parecem não ter isso dentro da sua constituição, sabe? Nós, que somos negras e negros, temos uma raiz ancestral tão forte que, por mais que a gente esteja desconectada dela, está de alguma forma em contato, é uma segurança que a gente sente. Então, a gente não precisa ficar por aí catando a tecnologia de ninguém porque a gente sabe que todas as nossas respostas estão ali. E isso também é válido para as pessoas brancas, é válido para todas as pessoas que estão presentes hoje aqui no planeta Terra, porque compartilhamos de uma consciência cósmica que é única. Mas os padrões e a forma como a Humanidade se desenvolveu fragmentaram tudo, todas as relações, principalmente essa relação das pessoas brancas com o resto do mundo, e isso gera desequilíbrio, sabe?
Pretos e brancos vivendo processos diferentes?
Juliana Luna: Sim, as pessoas brancas estão em um processo diferente do nosso, infelizmente elas precisam se agarrar em alguma coisa pra conseguir entender o que elas estão fazendo aqui neste mundo que não seja destruir ou fazer um monte de cagada. A minha pesquisa com a ioga é para que a minha própria expressão neste mundo seja livre. Talvez seja isso que a pessoas brancas busquem, mas com um aditivo aí que é a culpa. Essa, a gente não tem.
Como o tarô, a numerologia, a astrologia e a ioga podem servir de ferramentas de resistência à população preta?
Tati | A Papisa: Pra mim, o tarô, a numerologia e a astrologia são ferramentas para o autocuidado. E o autocuidado, assim como a escritora e ativista Audre Lorde já dizia, é uma forma de resistência. Então, a partir do momento em que a gente usa informações que parecem tão distantes e tão abstratas como ferramentas efetivas de melhoria na nossa vida, a gente já consegue dar um passo à frente. Isso não anula nem substitui outras formas cuidado, mas, de fato, se a gente entende e busca essas alternativas, acolhe essas mensagens e aconselhamentos dos oráculos, passamos a entender um pouco mais dos nossos processos. Isso traz tranquilidade e, consequentemente, impacta de forma positiva tanto o individual quanto o coletivo.
Juliana Luna: Eu acho que a ioga pode servir como ferramenta à população negra sim, mas não como resistência, porque ioga não é resistência. Ioga é sobre se render. Acredito que a gente, como população preta neste mundo, já resistiu demais e essa resistência é justamente o que bloqueia o desenvolvimento da nossa conexão com quem a gente é de verdade, com a nossa identidade. Acho que a gente se perdeu no processo de resistência. Resistimos tanto que resistimos até à nossa própria sabedoria interna, à nossa própria expressão ancestral. A gente enrijeceu muito por conta dessa casca que criamos pra nos proteger. Óbvio, não foi algo que aconteceu assim do nada, é a forma a gente achou para se proteger ao longo de tantos anos – só no Brasil são 400 anos e a História da colonização e do imperialismo é muito cruel.
Você acha que a resistência pode, em certo sentido, atrapalhar?
Juliana Luna: Claro que essa resistência tem uma raiz, um porquê, mas ela também fez com que nós não nos abríssemos para a nossa própria expressão, para a liberdade do nosso próprio saber. Isso é muito duro porque acaba limitando a liberdade na nossa existência. Então, acho que a ioga pode servir como um caminho de volta pra casa, para a casa que somos nós e a nossa conexão intrínseca com os nossos ancestrais. Ela pode ser o caminho para começar a liberar espaço para receber aquilo que a gente já possui, que já tá na nossa linhagem.
Papisa, você concorda que as pessoas negras parecem ainda estarem distantes dessas linguagens e saberes?
Tati | A Papisa: Eu me perguntei muito isso no ano passado; depois que joguei essa pergunta para o universo, a resposta veio e não, elas não estão distantes. Claro, existe um paralelo entre as religiões de matriz afro, de encarar a astrologia e o esoterismo também como algum tipo de religião. Mas eu não vejo a astrologia como uma religião e entendo que muitas pessoas negras vão se manter fixas em suas religiões de matriz afro, até por uma perspectiva mais diaspórica. Entretanto, o que eu sinto que muda em relação à procura por mapa astral ou uma tiragem de tarô é mais uma questão de acesso que se dá numa condição mais estrutural. Se tem uma pessoa preta de quebrada que vive em uma comunidade, e ela trabalha mil horas por dia, fica mil horas num busão lotado, precisa multiplicar a grana que ganha pra fazer mil coisas, a vida é muito difícil. E fica difícil qualquer perspectiva de fazer qualquer outra parada, ainda mais algo tão abstrato e lúdico como a parte esotérica. Mas isso vale pra tudo: esses problemas estruturais que afetam a galera preta atingem principalmente as questões de qualidade de vida, saúde mental, emocional e física. A parte esotérica é só uma vírgula, um ponto no meio de várias limitações estruturais causadas por esse sistema, por este mundo muito doido em que a gente vive.
A ioga é o que nos ajuda a saber como reagir, a nos mostrar que a gente pode, sim, parar, analisar, respirar no processo; que a gente não precisa reagir a tudo e que nem tudo é pessoal
Juliana, ser combativa combina com ser good vibes?
Juliana Luna: Combina! Mas o combate é uma consequência, a primeira reação é porque a gente se sente agredida. E se isso acontece é porque aquilo nos tocou de forma pessoal e quando a gente leva algo pro pessoal, absorve o que não é nosso. Então, cada vez que a gente faz isso, deixa coisas que não são da nossa própria essência atravessarem a gente, e é aí que mora o perigo, porque a nossa energia vital está sendo consumida por esses atravessamentos; a gente vai ficando cansada, agressiva, vai diminuindo o nosso ritmo vibracional. Se estivermos bem por dentro, no nosso coração, vamos lidar com as coisas da forma que conseguimos lidar, sem enlouquecer.
E tem um conflito aí?
Juliana Luna: Para mim, o conflito é sobre não levar tudo para o pessoal e escolher as minhas batalhas, escolher para quem eu quero falar essas coisas. Quer ser combativo sempre? Seja combativo. Mas entenda que, se esse combate valer a pena, é postura do guerreiro dois, Vriksasana, postura da árvore, sabe? Tudo que a gente faz na ioga tem referências de arquétipos que vivem na gente. A postura da árvore é isso, essa coisa com raízes, forte, grande, expansiva, plantada na terra, difícil de derrubar. O guerreiro é essa qualidade de quem tá ali, focado na missão, e vai lá a todo o custo e quer vencer.
A população negra sofre violências de todas as ordens e isso nos adoece. Como essas linguagens que trabalham com autoconhecimento, energia e intuição podem servir como instrumentos de cura?
Tati | A Papisa: O autoconhecimento pode ser uma ferramenta de autocuidado. Colocar suas condições em perspectiva ajuda muito a tranquilizar a mente, e a gente consegue acalmar um pouco o ritmo do corpo, das emoções, e isso em si já traz um benefício imenso. Às vezes esse formato terapêutico, que é muito do que eu faço, traz esse auxílio – apesar de eu ter uma opinião de que uma visão esotérica não anula a necessidade de uma série de outros cuidados com outros profissionais. Ler tarô não substitui uma terapia. Fazer mapa astral não substitui a psicanalista, um psicólogo, uma profissional que vá cuidar da sua cabeça. Então, perguntar no tarô “A minha saúde está bem?” não substitui fazer um check-up no médico. Isso é muito, muito importante. Eu acho que os saberes esotéricos são uma maneira de se mapear, se entender, se investigar, e também de saber encaminhar essas questões para cada um dos profissionais de acordo com cada especificação. Principalmente a galera preta que nasce no berço racista que é o nosso país e vai sofrendo uma série de violências que vão somatizando. Nada como boas terapias voltadas para a descolonização, voltadas para realmente curar os efeitos do racismo na negritude. Esse é um processo muito longo e, obviamente, muito sensível e doloroso. Mas, bom, faz parte do que a gente pode fazer por nós mesmas a partir do que já fizeram com a gente, sabe?
Juliana Luna: Sofremos violências de todas as ordens e a sociedade desenhou esse recorte de “estejam doentes e é isso que a vida é pra vocês”. Mas a grande questão é que nós compramos essa ideia de que devemos estar nesse lugar do racismo que adoece. Imagine: se alguém pega uma garrafa de veneno e entrega na minha mão, e eu sei que aquilo é veneno e que não é meu, e aí eu abro a garrafa, tomo o veneno e isso me faz mal. A pessoa vai olhar pra você e falar “realmente, você bebeu isso, te fez mal”. Aí você vai tomar outro gole, e falar “caramba, me fez mal de novo”. Eu me sinto nesse lugar quando falo do racismo, parece que eu tô tomando um veneno que não é meu, um veneno que alguém me entregou e que eu acreditei que era meu, por isso comecei a tomar. E foi me fazendo mal. Mas a gente tinha que estar gastando a nossa energia vital não tomando o veneno, mas, sim, buscando a nossa cura, e essa é a grande diferença dessas linguagens de autoconhecimento, energia e intuição. A gente precisa ser autossuficiente e entregar para as pessoas de volta o que é delas. O racismo não é nosso! Ele é do povo branco, do povo racista, e eles têm que cuidar desse problema deles. “Queridx, segure sua garrafa, tome seu veneno, porque isso não é meu! Estou aqui muito ocupada fazendo os meus rituais de autocuidado, fazendo as minhas meditações, indo pra lugares que eu adoro, em que vejo as pessoas que curto. E se um racista aparecer na minha frente, vou dar uma risada e continuar dançando plena. A vida é minha e eu não quero tomar esse veneno.”
Isso exige um afastamento que nem sempre é simples, né?
Juliana Luna: Eu sei que é difícil porque a gente se identifica com o racismo. Eu já chorei muito porque passei por situações racistas e não soube como reagir, só desabava. Mas, depois de um tempo, fui entendendo que cada vez que eu tomava aquele veneno e acreditava naquilo, me fazia mais mal, sabe? A gente precisa se conectar com as sabedorias ancestrais porque elas são nossas e é isso que vai dar força pra que a gente passe para um outro nível, onde o racismo e as opressões vão tirar muito menos energia vital da gente, e daí a gente vai ficar menos doente, vai comer melhor, vai saber se fortalecer como comunidade. Precisamos buscar essa cura. E quando a consciência expande, a gente participa de forma mais ativa na cura.
Algumas narrativas racistas nesse meio good vibes falam que estar sujeito ao racismo é uma questão cármica – ou seja, que em outra vida você foi racista e agora veio negro para aprender – ou até mesmo que falar sobre racismo é colocar a energia no mal. Que leituras vocês fazem dessas afirmações?
Tati | A Papisa: Essas leituras são muito eugenistas, racistas, preconceituosas e só servem para fazer a manutenção desse sistema violento, predatório e colonial que a gente mantém até hoje. Eu não valido nada na espiritualidade que tenha essa abordagem. Pode ter certeza que é muito comum a gente passar por esses espaços e trombar com essas narrativas. Eu mesma já passei por isso e ouvi esse tipo de coisas algumas vezes. Isso é: tentar creditar a responsabilidade da desigualdade a uma hierarquia espiritual, dizer que pessoas mais evoluídas vão estar em tal lugar e pessoas menos evoluídas em outro, e que vão estar sofrendo, sendo que essas pessoas ditas mais evoluídas, na prática, estão destruindo a porra toda, estão só propagando mais violência. Então, isso não faz sentido algum. É só uma maneira de ser racista, classista e preconceituoso sobre uma linguagem fofa e good vibes.
Justificar tudo pelos astros é simplista demais?
Tati | A Papisa: Sim! Particularmente, eu não gosto de misturar os assuntos dessa forma, do tipo “estamos enfrentando um problema aqui no Brasil porque tem uma conjunção no céu que está causando o problema”. Não, cara! As coisas vão acontecer de qualquer forma, pode até ter um testemunho astrológico em relação a uma série de questões, mas problemas estruturais que envolvem política, sociedade, coletivo, comunidade, economia, têm especialistas, têm estudos e suas justificativas históricas. Pode ter certeza de que tentar justificar essas questões com conhecimentos esotéricos é só uma maneira de perpetuar esse sistema violento.
Juliana Luna: É a galera racista good vibes. Racismo não tem nada de cármico. Ser negro não é uma punição. A desigualdade existe por um desequilíbrio completamente baseado na necessidade de poder que vem da parcela da população que existe em menor número no planeta, que são as pessoas brancas. Agora, o mais interessante é que a menor parcela de pessoas no planeta domina a maior parcela, isso é muito maluco. Esses dias eu vi uma professora de ioga famosíssima no Instagram, mas que eu nunca tinha visto na vida, publicando um texto mega agressivo que dizia mais ou menos assim: “O meu time fez um grupo no WhatsApp onde é proibido reclamar. Agora, todo mundo só compartilha meditações e mantras para a não reclamação e eu, como sou a líder, estou super orgulhosa do meu time porque quem reclama é quem gosta de estar na miséria.” Eu achei tão violento! Quem reclama gosta de ficar na miséria? Que ideia é essa de meritocracia? De onde veio isso? Que ioga que você pratica que te dá a liberdade de falar para as pessoas que elas não podem se expressar quando elas se sentem injustiçadas? Quando elas se sentem cansadas? Quando elas estão esgotadas de tanta opressão? Você não dá nem o direito de elas dizerem “Caraca, tá foda!”? Isso não é ioga. Entendo que a energia da reclamação tem uma vibração baixa… Mas a gente é humano. A gente precisa expressar nossas insatisfações e frustrações porque isso faz parte da nossa experiência. Quem é você na fila do pão para vir com um papo de meritocracia espiritualizada, sabe?
Aquele que está conectado com sua ancestralidade, com a sua força essencial, consegue desafiar os ideais coloniais com muito mais lucidez e estratégia
Você comentou a postagem?
Juliana Luna: Claro! escrevi um super comentário dizendo que ela não podia falar daquilo abertamente de forma tão agressiva. Pronto, os seguidores dela vieram me atacar dizendo que eu era uma pessoa horrível, que eu era um “inseto” porque os insetos são atraídos pela luz, então se eu estava ali era porque a luz dela brilha forte. Aí você vê que essas pessoas estão sempre buscando essa luz de um lugar higienizado no qual reclamar é um grande pecado. Esses discursos de que não se pode reclamar, de que “se você nasceu preto, você veio para aprender”, existem no mundo da ioga, mas são perspectivas filtradas pela ótica de cada um. E, bom, se a alma dessa pessoa está buscando essa higienização, deve ser porque ela precisa se purificar de pecados que sei lá quem cometeu na árvore ancestral dela e ela nem sabe disso, mas hoje ela tá ali, branquíssima, buscando a iluminação, sendo a expressão da luz divina para os seus seguidores. Pra mim, é só a perpetuação daquilo que o sistema diz: que você não pode reclamar da sua condição porque se está nela é porque não trabalhou o suficiente – por mais que uma pessoa preta tenha trabalhado duro a vida inteira em busca dessa melhora que nunca chega. Não atraímos desigualdades sociais, elas são condições sistêmicas. Existe uma inteligência cósmica e coletiva que estamos criando e reforçando, então rola uma grande desarmonia de situações que estão sendo reforçadas por todos nós. Enquanto a gente não consegue mudar esse disco, ele nos mantém nessa posição. Quando fazemos ioga, quando meditamos ou expandimos nossa consciência, conseguimos enxergar e questionar essas opressões. Não é sobre o que atraímos, mas sobre o que reforçamos. A nossa autorresponsabilidade precisa ser a de não reforçar esses padrões que deixam a gente tão vulnerável e ficar consciente naquilo que consegue mudar a chave para sairmos desse looping.
Na atual conjuntura política do Brasil, tem muita gente com medo e falando sobre resistência, mas a coisa pesa mais pras minorias sociais. Como o tarô, a numerologia, a astrologia e a ioga podem dar plenitude para as pessoas negras?
Tati | A Papisa: Realmente, estamos vivendo um momento muito complicado e muito duro, tanto individualmente quanto em comunidade. Eu vejo que o tarô, a astrologia e a numerologia nos ajudam a mapear e entender a questão em perspectiva. A partir daí, você consegue analisar de um outro ponto de vista o que pode render uma possível solução. Mas sempre dando autonomia para a pessoa dar esse passo, entender a questão e ver o que pode fazer. Por mais que eles possam ter uma abordagem terapêutica, é de extrema importância que, uma vez identificado o problema e o foco que precisa de cuidado, a pessoa se encaminhe para um especialista da área. Por exemplo: se você está ansiosa, aflita ou depressiva demais, não vai ter tarô que sustente isso. A pessoa precisa, sim, de um profissional que cuide da cabecinha, ou seja, um psicólogo, um psicanalista ou um psiquiatra.
Juliana Luna: A ioga é uma ferramenta para abrir espaço no nosso corpo, para nos dar força nas tomadas de decisão. Não está sendo fácil e, hoje em dia, essa plenitude é uma questão de escolha. Mas falar isso da minha perspectiva é um privilégio muito grande, eu tenho o privilégio de poder escolher isso. Tem muita gente que não está nessa posição, que está no desespero, perdendo a casa, perdendo emprego, não sabendo como vai sustentar a família. Muita gente perdeu aquilo que trazia o mínimo de conforto por conta dessas questões políticas. Então é preciso dizer, sim, é difícil alcançar a plenitude, mas é possível. É sobre como a gente reage a tudo isso. A ioga é o que nos ajuda a saber como reagir, a nos mostrar que a gente pode, sim, parar, analisar, respirar no processo; que a gente não precisa reagir a tudo e que nem tudo é pessoal. Se você puder tirar 20 minutos do dia que seja para meditar, respirar, sentar e se alongar, você volta para a sua vida e consegue ter um momento de clareza, pode enxergar uma oportunidade ou se equilibrar minimamente em uma situação. A gente pode começar a buscar essa sabedoria devagarinho, pode ser com uma aula básica no YouTube, fazendo as posições na sala sem pagar rios de dinheiro. A única coisa de que você precisa para fazer ioga é o seu corpo, sua disposição e algo como um guia para te dar uma base.
Como essas ferramentas de autoconhecimento podem ser caminhos para retomarmos nossa subjetividade e desviarmos de todas as ideias coloniais que carregamos sobre nós?
Tati | A Papisa: O conhecimento esotérico tem uma carga cultural, artística, filosófica, histórica e hermética muito potente. Utilizá-lo como uma ferramenta é recorrer à ancestralidade, recorrer ao que a gente tinha antes de o branco chegar e falar o que é certo e o que não é; o que é humano e o que não é. Usar essas informações que nos acompanham há milhares de anos já é uma reconexão. Eu acho que desde sempre as pessoas se perguntam coisas como “De onde a gente vem?” e “Pra onde a gente vai?; esses questionamentos já se desdobraram em infinitos conhecimentos, como a astrologia, o tarô, a numerologia, o reiki, constelação, e vão se desdobrar cada vez mais. Cada pessoa pode encontrar a sua maneira, a sua alternativa, o que realmente se encaixa no meio de tudo isso. Não acredito que exista uma fórmula para essas questões, mas é preciso lembrar que esses conhecimentos esotéricos e holísticos nos acompanham muito, mas muito antes do colonialismo. Estar em contato com essa parte esotérica já é estar em contato com uma bagagem ancestral da nossa vida.
Juliana Luna: As ferramentas de autoconhecimento são caminhos para a gente retomar não só a nossa subjetividade, mas também a nossa fisicalidade, a expressão mais pura da verdade da nossa alma. Eu acho que aquele que está conectado com sua ancestralidade, com a sua força essencial, consegue desafiar os ideais coloniais com muito mais lucidez e estratégia – e é preciso ser estratégico para conseguir descolonizar. Esse termo está muito em voga, “descolonizar o pensamento e o corpo”. Mas, como a gente consegue descolonizar isso? Olhando e transformando a nossa estrutura neurológica. Explico: a expressão do nosso sistema nervoso tem uma grande combinação de padrões; ela pode ser de luta, pode ser de fuga, pode ser de ficar congelado. São várias as combinações: tem gente que congela, gente que congela para depois lutar, gente que luta e foge, gente que só luta, e isso tem a ver com os nosso traumas, de como a gente se condicionou. Nós, pessoas negras, temos muito a falar sobre traumas e sobre estarmos vivendo, até hoje, na repetição dos padrões causados por esse trauma. É preciso falar sobre a quebra de padrões de comunicação neurológica, sobre como essa combinação de padrões que o nosso sistema nervoso simpático adquiriu ao longo do tempo faz com que a gente reaja de formas tão violentas para nós mesmos.
Explica melhor esse conceito.
Juliana Luna: Por mais que um fio seja grosso e forte, se ele viver em constante curto-circuito, vai dar ruim. Os ideais coloniais são esses curto-circuitos que vão sendo aplicados mais e mais nesse fio que só vai fritando, e nosso sistema nervoso é o cobre que recebe isso. A gente tem uma responsabilidade de fazer com que essa comunicação neurológica seja transformada. A gente inicia o processo de descolonização criando novos caminhos, olhando para o nosso corpo emocional, para os comportamentos que fazem a gente viver nessa loucura e que fritam o nosso sistema diretamente. Isso, sim, tem a ver com os fatores externos, mas nós temos o poder de nos auto-responsabilizar pelo nosso fortalecimento interno. Cuidar do nosso corpo emocional, criar nossa consciência a partir dessa auto-responsabilidade, é a nossa missão atual porque a gente precisa ir aliviando a carga genética das nossas próprias gerações.
Isso está perto de virar realidade?
Juliana Luna: Olha, talvez esteja muito distante da nossa realidade hoje, mas é possível. A retomada da nossa subjetividade vem disso, passa por esse lugar pelo qual a gente precisa olhar para a nossa constituição e cada vez mais se autoavaliar: “Será que eu tô reagindo demais? Eu não sinto que eu tenho valor nesse mundo, o que isso me causa emocionalmente? Me causa ansiedade? Sentimentos de rejeição?” Se você tem sentimentos de rejeição e as pessoas olham para você na rua, você vai interpretar isso como rejeição. Aí acontece um caso de racismo e você paralisa, você entra no parafuso de não ter valor na sociedade, você vive num looping infernal e seu sistema nervoso recebe essa carga pesada. Isso é o sistema colonial se manifestando na gente! Isso é um corpo que tá pensando diariamente que está se descolonizando porque está lendo todos os livros, mas, no final, você ainda tá sendo vítima do sistema! Não estou dizendo pra não ler, leia! Mas se eduque para poder transformar também o que não faz parte da lógica cognitiva e intelectual. Coisas da ordem sensorial, muito mais conectada com abrir espaço para que sua verdadeira essência consiga ficar mais confortável dentro de você, e que te ajudam a não carregar esse amontoado de coisas no seu sistema nervoso, um jeito de fazer essa dor morrer ali. A ioga nos ajuda a olhar para essas coisas que parecem estar fora do nosso alcance.
Brenda Vidal é jornalista. Escreve sobre música, cultura, direitos humanos, comportamento, feminismo e negritude
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